sexta-feira, 6 de abril de 2012


O papel, da Dialética em Aristóteles, Kant e Hegel - Tercio Sampaio Ferraz Jr.

Introdução: limites desta investigação

Não espere o leitor uma investigação exaustiva do problema. O tema que nos propomos elucidar é composto, evidentemente, de uma série de sub-temas que ferem, no seu conjunto, o próprio cerne dos sistemas filosóficos em tela. Não nos preocupa, entretanto, uma abordagem quantitativa da temática, em todas as suas ramificações, nem um entendimento cabal da própria dialética em cada um dos autores, mas apenas a sua função nos respectivos sistemas filosóficos.

Partimos do pressuposto de que é inerente a toda filosofia uma ambição arquitetônica. elaborando-se ela como um discurso rigoroso, onde se vinculam método e conteúdo, posto que a verdade da filosofia se instaura no seu próprio método. É nestes termos que se coloca o problema da função da dialética. isto é, da dialética dentro da arquitetônica. restringindo-nos, em nossa análise, ao nível da história da filosofia.

Dialética em Aristóteles

"São dialéticos os argumentos que concluem a partir de premissas prováveis, pela contraditória da tese dada" (Ref. Sof. 165b3). Isto significa que através do raciocínio dialético podemos provar, persuasivamente, teses contraditórias. Quereria, com isto. Aristóteles demonstrar que todas as teses são boas e, por meio de sofismas, provar uma contradição inerente ao real?

Evidentemente não. O raciocínio sobre contradições não significa para ele a contradição do próprio real. O que sucede é que, para nós, a linguagem, meio necessário para a comunicação humana, não é absolutamente idêntica ao real que ela simboliza.

A linguagem é definida por Aristóteles como símbolo: ela é "símbolo dos estados da alma" (De Interpr. 16a3). A relação entre a linguagem e o ser é, pois, mediata, havendo entre ambos as imagens. Daí a distinção entre símbolos (linguagem) e signos (estados da alma), sendo os primeiro arbitrários, não significativos por si e em si, enquanto os segundos são naturais, semelhantes por si às coisas a que correspondem. Donde se seguem dois tipos de relação:

a) de semelhança: imagens e coisas;

b) de significação: linguagem e imagens.

Na verdade, admitindo-se que os "estados da alma", são cópias da realidade, o signo, na problemática da linguagem (mas não sob o ângulo psicológico), pode ser esquecido. A questão, para Aristóteles, passa a girar em torno da relação mediata e equívoca entre o "logos" e a realidade.

O "logos" é definido como "som vocal que tem uma significação convencional" (De Interpr. 16b28). Convencional, porque nada se torna por natureza um nome.. A utilização de algo como símbolo implica numa certa arbitrariedade: a constituição de uma relação simbólica pressupõe a intervenção do espírito sob a forma de imposição de sentido.

A linguagem, portanto, não é imitação do ser, mas símbolo do ser; ela não o manifesta, mas o significa. A relação símbolo-ser não tem, por isso. um sentido existencial, isto é, o "logos" é significante, sem que isto implique que ele seja verdadeiro ou falso. Em outras palavras: a significação faz abstração da existência podendo um símbolo significar coisas fictícias. Por exemplo: um unicórnio, uma quimera (De Interpr. 16a16).

Daí se segue que todo enunciado significativo (phásis) não é necessariamente nem uma afirmação (katáphasis) nem uma negação (apóphasis) (De Interpr. 16b27). Para que haja afirmação ou negação é preciso outra coisa: a composição ou divisão dos termos isoladamente significativos, isto é, uma proposição.

Isto quer dizer que, se não podemos imitar ou manifestar as coisas mesmas na relação simbólica, podemos ao menos manifestar a relação (de junção ou separação) entre elas: a proposição aparece, pois, como o lugar privilegiado onde o "logos" sai de si mesmo, isto é, deixa de referir-se às coisas, para capitá-las nas suas relações e na sua existência. O "logos" não é verdadeiro ou falso enquanto significativo, mas o é enquanto propositivo.

A essência da proposição não está, propriamente, nos termos a compor, mas no ato da composição: no juízo. O juízo é um "estado de alma" e não um símbolo, não sendo, pois, função da linguagem, mas do espirito. Por isso, pode-se dizer que, no juízo o "logos" tenta suprimir a distância que o separa das coisas, deixando de ser discurso para ser pensamento das coisas.

Com efeito, a função óbvia da linguagem é significar, no sentido de designar as coisas, não havendo necessidade de que o "logos" exprima as coisas, isto é, nos dê um conhecimento claro das coisas, da sua essência. Entretanto, a linguagem, do plano do juízo, manifesta, revela, "deixa ver" aquilo a que ela se refere. A linguagem traduz, nestes termos, uma certa impotência: de um lado, ela tenta manifestar, mas, por natureza, ela só pode designar; assim, quando ela toma uma função judicativa e tenta exprimir, ela não chega a revelar as coisas, mas torna-se um .substituto delas Isto é, já que não é possível trazer as coisas mesmas para o discurso, usamos os seus substitutos, os símbolos, supondo que o que se passa com as coisas, passa-se também com eles.

Na verdade, porém, esta suposição é relativa, na medida em que "os nomes são em numero limitado, bem como a pluralidade das definições, enquanto as coisas são infinitas em número" (Ref. Sof. 165a7-l.3). Isto é, achando-se o "logos" distante da realidade, existe sempre a possibilidade de que a linguagem se desvincule do que ela simboliza por causa da sua limitação, induzindo-nos ao erro. Em outras palavras, o problema, para Arislóteles, deve ser equacionado nos seguintes termos: a verdade nos é dada de modo ante-predicativo — a verdade está nas coisas (Mel. 1051a34) – mas só pode ser formulada ao nível do discurso a verdade está no pensamento (.Mel. 1028h16); o discurso, entretanto, por causa da distância que o separa da realidade, é naturalmente equívoco, isto é, a equivocidade é um vício essencial da linguagem. O próprio "logos" pode assim, constituir uma barreira à obtenção da verdade. Como solucionar a questão?

Aristóteles reconhece a existência de certos discursos — dialéticos, isto é, somente verbais, suficientes para fundar um diálogo coerente — o discurso comum entre os homens — e que preenchem bem a função designativa. Ao nível destes discursos, diz-se que a linguagem abre uma via, aponta as coisas que devem ser investigadas, ainda que não se chegue até elas.

Com efeito, a dialética, arte das contradições, tem por utilidade o exercício quase escolar da palavra, oferecendo um método eficiente de argumentação. Ela nos ensina a discutir, representando a possibilidade de se chegar aos primeiros princípios da ciência; partindo de premissas prováveis, que representam a opinião da maioria dos sábios, através de contradições sucessivas, ela chega aos princípios, cuja fundamento é, porém, inevitavelmente, precário.

Este caráter da dialética, que a faz confrontar as opiniões, discutir com elas, instaurar com elas um diálogo, corresponde a um procedimento critico. Realmente. a critica é uma espécie da dialética e uma de suas formas mais importantes (Ref. Sof. 172a21 - 171b4). A crítica não é bem uma ciência, com objeto próprio, mas uma arte geral, cuja posse é atribuível a qualquer pessoa, mesmo as ignorantes. A importância da critica, da crítica feita através da prova da tese contrária, está no fortalecimento das opiniões, pela erradicação progressiva das equivocidades. Desde que, na construção da ciência, enquanto conhecimento verdadeiro, só podemos partir daquilo que é aceito como principio, a critica do verossimilhante nos conduz ao discurso cientifico. A crítica dos grandes sistemas, dos grandes filósofos, da opinião dos grupos, resulta, assim, numa atividade fundamental da dialética.

O problema da dialética, em Aristóteles, é, portanto, colocado ao nível da obtenção da verdade. Estando esta nas coisas, mas podendo exprimir-se apenas através da linguagem, a dialética tem uma clara função instrumental -órganon. Identifica-se, assim, o órganon, na prática, com a noção de dialética, conforme a vemos nos Tópicos (105a21; a33 ss.) um meio para resolver as aporias, a ambigüidade natural da linguagem, para buscar a alteridade e a identidade, levantar as premissas e as opiniões e, afinal, confrontá-las. Nesta atividade, a dialética aparece como a lógica da verdade procurada. Sua função é perfurar a barreira do "logos", na busca dos princípios e da verdade (Cf. Aubenque: Le probléme de l’être chez Aristote” – Paris. 1962, p. 251 ss.)

Não lhe cabe, porém, a estrutura e a sistematização da verdade possuída: a lógica da ciência à atribuída à analítica.

Aristóteles tem um conceito bastante estrito de ciência. A cientificidade é apenas Atribuída ao conhecimento da coisa como ela é (An. Posl. l, 2, 71b). Vale dizer, ao conhecimento da causalidade, da relação e da necessidade da coisa. Aristóteles nos fala, nestes lermos, em conhecimento universal. O universal não é como que uma soma ou resumo dos dados da experiência, mas um "limite", em cuja estabilidade ou determinabilidade repousa a estabilidade da própria experiência. O conhecimento universal é o conhecimento da essência. Por outro lado, porque as coisas mesmas têm uma essência é que as palavras podem ter uma significação unívoca, isto é, a unidade nominal, em Aristótelcs, é dada pelo real, ao nível da linguagem. Ora, sendo o real uno e idêntico, na estrutura do conhecimento verdadeiro, a analítica tem o primado. A dialética, ao seu lado, que parte das contradições, torna-se uma arte subsidiária: ela c apenas um iter.

Dialética em Kant.

Para Kant, a lógica transcendental tem por função determinar a origem, a extensão e o valor objetivo dos conhecimentos a priori. A lógica, nestes termos, não é para ele apenas uma ciência da forma da razão, mas uma ciência da razão por sua matéria. Não se limita, assim, a uma determinação subjetiva da razão, apontando meramente o modo pelo qual o entendimento pensa, mas destaca, através dos princípios a priori, como deve o espírito pensar. A lógica transcendental constitui-se, pois, para Kant, nas condições obrigatórias do pensamento, condições determinantes da veracidade e da própria existência do nosso pensamento.

Essa dissecação da razão compreende a descoberta dos elementos do entendimento puro, sua decomposição. Esta decomposição cabe à analítica transcendental. Ela versa sobre o entendimento puro, lido como uma unidade subsistente por si, independente de qualquer elemento empírico e de toda sensibilidade. Tratando dos elementos do conhecimento puro do entendimento e dos princípios sem os quais nenhum objeto pode ser absolutamente pensado, a analítica vem a se constituir na própria lógica da verdade.

A analítica transcendental quer demonstrar que o entendimento é limitado e não permite atingir as coisas em si. A dedução transcendental parece, neste sentido, ser suficiente para determinar nas categorias não um conhecimento completo e acabado, mas simples modos que supõem uma matéria: as instituições sensíveis. Diante disto, a interpretação tradicional de Kant, atribuindo à dialética transcendental a demonstração do vazio representado pelos elementos transcendentais assinalados pela analítica, relega a primeira, subsidiariamente, a um segundo plano, transformando-a em mera contra-prova da analítica.

Entretanto, isto não se dá absolutamente. Com efeito, diz-nos Kant. "a razão humana é, por sua natureza, arquitetônica, isto é, ela considera todos os conhecimentos como pertencentes a um sistema possível" (K.r.V. B-329). Se alentarmos os nossos conhecimentos do entendimento", continua ele, "na sua extensão total, veremos que aquilo sobre o que a razão dispõe de modo absolutamente peculiar e que ela procura realizar (zustande bringen) é a unidade do sistema" (K.r.V. B-148). Esta exigência da razão de uma unidade sistemática significa, em primeiro lugar e num sentido negativo, que os nossos conhecimentos não devem representar um mero agregado, sem unidade e sem sentido (K.r.V. B-538 ss.), fundado simplesmente, por exemplo, na semelhança dos diversos, pois, neste caso, teríamos apenas uma unidade técnica e não arquitetônica (K.r.V. B-539). Em segundo lugar e num sentido positivo, significa ela que todos os conhecimentos devem constituir uma totalidade comum, articulada nos seus elementos. Esta articulação deve proceder da afinidade e da conexão intima dos próprios fatores, devendo igualmente determinar "a priori a extensão (Umfang) da diversidade, bem como o lugar das partes entre si" (K.r.V. B-538). de tal modo que não possa ocorrer nem a retirada nem o acréscimo de membro, sem a destruição da unidade orgânica.

Essa totalidade sistemática não pode sei atingida pela experiência. Toda unidade que as categorias do entendimento possam produzir em atenção à síntese das diversas imagens em uma intuição, constitui, comparada com a exigência arquitetônica da razão, apenas uma tentativa de "soletrar os fenômenos segundo uma unidade sintética, para poder lê-los como experiência", permanecendo, destarte, sempre parcial (K.r.V. A-200; B-216). Ou seja. a razão exige uma unidade sistemática para a qual toda unidade do entendimento é uni elemento e, em virtude da qual, esta última se torna possível: nos quadros do conhecimento empírico não há unidade arquitetônica, que surge, outrossim, de "proposições sintéticas" (synlhetische Sätze) — as idéias, das quais o entendimento não tem ciência (K.r.V. A-197; B-243). Os princípios sistematizadores, as idéias, contêm, deste modo, uma certa "completude" (Vollständigkeit), "para a qual não basta nenhum conhecimento empírico possível, a razão tendo em vista ai apenas uma unidade sistemática, da qual ela procura aproximar a unidade empiricamente possível, sem alcançá-la de modo cabal" (K.r.V. B-383).

Por outro lado, sabemos que as leis do entendimento são, a priori, de validez objetiva, pois só por seu intermédio a experiência se torna possível. O entendimento é, assim, o legislador do mundo objetivo. Ele é não só a condição de possibilidade da experiência, mas também do próprio objeto da experiência. A razão, ao contrário, não é absolutamente necessária para nenhuma espécie de conhecimento. Apesar disso, ela também tem uma função legiferante, não, porém, para os objetos, mas para nós, para o sujeito. "Eu denomino", diz Kant, "todos os princípios (Grundsätze) subjetivos, que derivam não da propriedade do objeto, mas do interesse da razão referente a uma certa perfeição possível do conhecimento deste objeto, máximas da razão. Há, assim, máximas da razão especulativa, que repousam meramente no interesse especulativo da mesma, podendo até parecer serem elas princípios objetivos" (K.r.V. B-110).

As máximas não prescrevem à realidade que ela deva constituir-se sistematicamente na totalidade unitária da finalidade da razão, mas sim que o .sujeito deva encarar o conjunto da realidade, como se ela constituísse um sistema total, sem preocupar-se com a possibilidade de que a realidade já constitua ou não uma ordem sistemática. O interesse arquitetônico postula e "projeta" a conexão, mas não pode estabelecê-la". A unidade sistemática é "apenas unidade projetada, que deve ser vista não como dada, mas tão somente como problema" (K.r.V. R-129).

Isto significa que o absoluto, que regula todo o sistema racional (vernünftig) não nos é jamais "dado" (gegeben), mas nos é "assinalado como finalidade" (aufgegeben). As idéias, sobre as quais a unidade sistemática repousa, são apenas conceitos projetados": eles constróem o geral, o qual é aceito apenas como problemático, enquanto tarefa posta. A razão, neste sentido, não constitui nenhum objeto, ela não é constitutiva de nada, consistindo tão somente em assinalar pontos fictícios que servem de orientação ao entendimento, na medida em que lhe mostram como ele deve investigar a natureza, a fim de encontrar nela uma conexão e uma unidade. O pensamento sistemático, em Kant, aparece, pois, como um procedimento espontâneo da própria razão, sem fundamento objetivo.

Vê-se, por aí, a função altamente positiva da dialética na filosofia kantiana. As idéias transcendentais não são apenas contra-prova — aspecto negativo — da possibilidade limitada do conhecimento, mas atuam como ficções eurísticas, isto é, elas nos permitem realizar a unidade que não lemos no curso de nossas investigações. Por exemplo, a idéia de alma pode representar, como uma só unidade, o conjunto dos fenômenos psíquicos.

Esta função da dialética, possibilitando a sistematização da realidade, tem, na verdade, ligação muito mais direta com a obra posterior de Kant. com a Critica da Razão Prática e a Critica do Juízo, do que com a analítica transcendental. Com efeito, a impossibilidade da metafísica tradicional, a constatação da antitética da razão pura não poderiam conduzir Kant a um ceticismo. Ao contrário, sua atividade dialética, positivamente encarada, realiza, por um novo caminho – crítico – aquela aspiração última de uma sistematização de todo o real.

A situação da dialética, portanto, se inverte, em relação à Aristóteles. Para este, a inversão nunca seria admissível, desde que o real dado não é contraditório, mas uno, sendo contraditória a linguagem, Em Kant o problema assim posto não existe. Não há compromisso com uma realidade una. Ao contrário, o mundo se apresenta como um caos que à razão cabe ordenar. Assim, para Aristóleles, o erro surge da possibilidade de uma desvinculação entre linguagem e realidade. Para Kant, a verdade é ante-predicativa. O erro resulta de uma atividade — indevida – da própria razão. Assim, com ele, a dialética deixa de ser iter, abandona o nível lógico-formal e, ascendendo ao nível transcendental, participa da natureza da própria razão, possibilitando-lhe sua aspiração arquitetônica

Dialética em Hegel.

A Hegel não passou despercebido o sentido mais profundo da dialética kantiana. "Kant pôs a dialética bem no alvo e é este um dos seus maiores méritos" (Wiss. d. Logik – trad. A. Moni 1925, p 10). Reconhecendo que Kant operou uma transformação total no conceito e no uso da dialética, continua Hegel, dizendo que "a idéia geral que Kant pôs como base e fez valer, é a objetividade da aparência e a necessidade da contradição pertencendo à natureza da determinação do pensamento", (op. cit. p. 10).

Em que pese, entretanto, a transformação total representada pela concepção kantiana, esta ainda está longe da revolução que Hegel pretende operar no pensamento filosófico. Na verdade, o criticismo transcendental de Kant separa o conhecimento nos seus elementos a priori e a posteriori. Através do método critico, o significado dos fafores apriorísticos individuais e sua relação com os empíricos são, certamente, esclarecidos. O mesmo não ,se pode dizer, porém, do conjunto das funções a priori da razão, se captadas como pertencentes a uma unidade. Pois, segundo o próprio Kant, em relação a todos os elementos da esfera apriorística, dever-se-ia dizer que eles são a priori antecipados. Surge aí, porém, a necessidade de um critério unitário que permita determinar efetivamente o campo do a priori. Este critério, como vimos, não pode localizar-se no material empírico, razão pela qual o próprio Kant tentou um ordenamento sistemático das formas puras da razão, cujo principio se encontra na lógica pura e nas leis imanentes da atividade pura do entendimento. Dai se segue, contudo, uma contraposição logicamente estranha entre forma e matéria, que tem como conseqüência a "Skepsis" critica de Maimon, que duvida da possibilidade de uma delimitação não confliliva dos elementos absolutamente a priori em face dos a posteriori. "O destino observado no criticismo de Maimon", comenta o neo-Kantiano E. Lask (Gesammelle Schriften, Tübingen. 1923,. I-81), "mostra, assim, aonde o procedimento meramente indutivo e "rapsódico" ao qual também Kant permanece jungido, necessariamente nos deveria conduzir". Ele nos ensina que só se pode crer na necessidade da razão, não podendo ela ser fundada. A questão, porém, é saber se a um tal ceticismo deveria, realmente, caber a última palavra.

Vista deste ângulo, a dialética em Hegel vai assumir uma função absorvente e decisiva dentro da sistemática filosófica.

A possibilidade de uma sistemática universal não é, evidentemente, uma questão quantitativa, isto é, não se refere à quantidade das coisas sabidas em um tempo dado. O principio construtivo do sistema universal é antes de natureza qualitativa e se relaciona a tudo o que é filosoficamente sabido (Landgrebe: "Hegels Systembegriff" in Phäno-menologie und Geschichte - Darmstadt, 1968 p. 65 ss.).

Saber filosoficamente alguma coisa significa saber algo em seu ser (Sein), ou seja, em sua verdade e realidade. Neste sentido, a filosofia, à diferença das diversas ciências, busca explicitar um saber que devemos já possuir para poder tornar um determinado campo dos entes tema de uma ciência qualquer. Vale dizer, saber filosoficamente é saber o princípio em virtude do qual algo é realmente. Assim, quando dizemos que algo é isto e aquilo, o sentido mais profundo deste "é" já nos deve ser de algum modo conhecido. Quer dizer, há uma totalidade do ser (das Ganze des Seins) dentro da qual nós estamos de antemão, ainda que não se tenha tornado consciente aquilo que ela é (v. Obras completas, 1.º ed., VII ( pág. 7, 30).

A palavra "totalidade" não é tomada aqui num sentido somatório, mas refere-se ao conceito de sistema orgânico (Enzyklopädie § 336) enquanto desdobramento da totalidade já de algum modo entendida, desdobramento do ser (Sein) como principio a partir do qual lodo singular se determina. A tarefa de uma sistemática universal esclarece-se, deste modo, com um tornar expressamente consciente o saber em torno do principio, isto é, do ser (Sein), em virtude do qual a multiplicidade pode ser unificada, permitindo-nos dizer que realizamos experiências de uma multiplicidade de coisas cognoscíveis.

O ser (Sein) é principio em dois sentidos: principio responsável pela essência (Wesen) das coisas, isto é, por aquilo que o mundo (Welt) é, como conexão de acontecimentos e devir em seus fatores; e principio responsável pela existência (I)asein) desta mesma conexão, isto é, responsável pelo fato de que ela exista. O principio, nestes lermos, é absoluto, na medida em que não se funda em nenhuma outra coisa.

A questão do ser (Sein) revela-se, assim, como a questão do absoluto, que Hegel refere à idéia (Idee) : "a idéia é o verdadeiro em e por si, a unidade absoluta do conceito e da objetividade" (Enzykl. § 213)3. A idéia é, pois. o que constitui a realidade dos objetos e, ao mesmo tempo, possibilita que tenhamos representações corretas desta realidade, ou seja, "unidade do conceito e da objetividade. O absoluto é, portanto, "a idéia geral e una, que se especifica, pelo juízo (urteilend), no sistema das idéias determinadas, que o são apenas para retornar à idéia una, à sua verdade". Estas idéias são "especificações" (Besonderungen), isto é, "momentos" (no sentido de fatores) da idéia absoluta, nela apenas subsistentes.

Hegel afirma que a idéia se especifica pelo juízo num sistema de idéias específicas. Assim escreve ele: "a partir deste juizo é que a idéia é, primeiramente, apenas a substância única e geral, mas (a partir dele) sua realidade desenvolvida e verdadeira é que ela seja como sujeito e, assim, como espirito" (Enzykl. § 214). E noutro passo: "A idéia pode ser captada como a razão (Vernunft), além disso, como sujeito-objelo, como unidade do real e do ideal, do finito e do infinito, da alma e do corpo, como a possibilidade que tem em si mesma sua realidade, como aquilo cuja natureza só pode-se concebida como existente, ele, porque nela estão contidas todas as relações (Verhältnisse) do entendimento, infinito retorno e identidade em si" (Id. Ib.). A idéia absoluta é portanto, a unidade dos opostos e seu princípio de emanação e anulação. Isto é, ela é a "força" (Krafl) que permite a emanação de todo ente em suas oposições.

Qual é, então, a atividade desta "força"? A idéia foi determinada como "espirito" (Geist), "razão" (Vernunft), "sujeito" (Subjekt). A atividade especifica do "espirito" é: "pensar" (Denken) e o "pensar" se realiza no "julgar" (Urteilen). que se expressa em "proposições" (Sätze). "Pensar" é "refletir", é "alo de reflexão". Na "reflexão" bipartimo-nos e permanecemos num único e mesmo eu: na consciência que já lemos e na consciência que faz disto um objeto (Gegenstand). Temos aí o modelo originário da "unidade dos opostos".

Assim, quando Hegel fala de juizo (Urteil) como pensar (denken), está aí implícito o sentido etimológico da palavra alemã Urteilung Ur-teilung isto é, uma "partição originária" do absolutamente único. Tudo o que é e do qual se diz que é realmente deve ser concebido como resultado da atividade (Täligkeit) da idéia enquanto um "Urteilen".

Com isto não se está, evidentemente, afirmando um processo dedutivo dos singulares factuais, a partir do espírito absoluto. Trata-se, antes, da compreensão da essencialidade (Wesenhaftes) em todos os singulares factuais. Cada juizo, como Ur-teil, contém, em si, o principio de uma dualização. Ele desdobra o sujeito em seus predicados, volta-se refletidamente sobre o julgado, reflete sobre aquilo que ele já tem no julgado: o sujeito desdobra-se nele e é, aí, apesar disso, um único e mesmo sujeito pensante. Todo juízo, assim, não é uma conclusão (Schluss), mas uma decisão (Entschluss): a idéia decide-se por islã dualização (Entzweiung) consigo mesma. São as decisões do espirito, nas quais o ente e criado. A idéia é, pois, principio do movimento. Com isto Hegel pode dizer que a lógica (dialética), com a qual o sistema principia, é a apresentação (Darstellung) do espírito absoluto, isto é, o modo no qual o espirito, pensando, se torna consciente.

Esta relação originária (dialética) do ser uno (Einssein) no ser separado (Getrenntsein) é a própria estrutura do pensar. Observa-se aqui a diferença entre Hegel e Kant. Para este, o ser (Sein) é predicado da posição do ser no juízo, resultante da espontaneidade do entendimento. Desde que o entendimento, na posição das coisas sobre as quais ele julga, não as pode produzir, mas está prisioneiro do dado, isto é, de uma receptividade, o ser posto em toda atividade do entendimento é apenas ser-para-nós: fenômeno. Ou seja, mesmo as mais altas atividades do pensar, as inferências sistematizantes da razão (Vernunft) do condicionado ao incondicionado, do finito ao infinito, tem poder apenas sobre o ser-para-nós, isto é, sobre o conjunto conexo dos fenômenos, na medida em que estes constituem limite de cognoscibilidade dos dados. Elas não atingem, portanto, o ser tal como ele é. Isto porque, a possibilidade, defendida por Kant, de se sustentar, ao mesmo tempo, tese e antítese. — pois os opostos parecem não se excluir mutuamente significa que temos de renunciar ao absoluto.

Ora. Hegel estabelece um enunciado sobre o próprio ser. Nestes lermos, como ele mesmo o diz, (Wiss. d. l.og. p. 39). a dialética, anteriormente dada como uma parle separada da lógica, como um procedimento extrínseco e negativo, surge agora como um procedimento pertencente ao próprio ser. Em outras palavras, as limitações do entendimento devem, não ser recusadas, mas remetidas ao absoluto. Sua relação com o absoluto é o movimento no qual cada determinação mostrará que ela transgrediu seus limites, que não se pode pensar mais em lermos de limitude.

Vimos assim as vicissitudes por que passa a dialética. Em Arislóteles, a realidade una é fundamento do discurso verdadeiro. A dialética, a este nível, é secundária. A sistematização do real cabe à analítica. Com Kant, a dialética abandona o nível linguístico e, atingindo o plano transcendental, participa da natureza da razão, possibilitando, embora numa dimensão limitada, a única sistematização possível da totalidade, onde as idéias transcendentais se constituem em princípios eurísticos Finalmente, com Hegel, a superação do problema da síntese e da unidade sintética, no campo do conhecimento, leva a questão para o campo da própria consciência individual nas suas relações com a totalidade das manifestações existentes. O movimento de negação dos conceitos e sua superação passa a ser não o movimento do aparente, mas da própria essência da consciência. Com isto, a dialética despreza a lógica analítica formal e se constitui na única capaz de fornecer a sistematização universal.

Fonte: Revista Brasileira de Filosofia, v. XX, São Paulo: 1970: pp. 474-486.

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