quarta-feira, 11 de abril de 2012

NOÇÃO E OBJETIVO DA FILOSOFIA DO DIREITO ( Paulo Dourado Gusmão ) 


1. Considerações Prévias


   Ao  se  pretender  investigar  o  conhecimento  jurídico  pela  via filosófica  é  necessário, primeiramente, que  este  caminho  seja  familiar ao  pesquisador,  enquadrando-se  nos  limites  de sua  experiência.  Sem a prévia  noção  da  Filosofia  geral,  por  seus  métodos  e  funções,  não é possível alcançar a plena compreensão da Filosofia do Direito, pois, enquanto aquela é gênero, esta  é  espécie,  e  tudo  quanto  predicamos à  primeira  estamos,  igualmente,  predicando  à segunda. A cultura filosófica somente prospera no espírito afeito à reflexão e aberto aos grandes temas que envolvem a natureza e o homem. Se é verdade que a condição de iusfilósofo não se adquire  por  título  universitário, senão  pela  constância  do  pensamento  dialético,  também  é  certo que somente  atinge  a  situação  de  jurisfilósofo  o  jurista  que  exercita,  como hábito,  a  atitude filosófica.  E  que  a cultura  superior  do  ius não  se forma  com  o  simples  acúmulo  de  informações que  os  tratados  apresentam;  ela  é,  ao  mesmo  tempo,  saber  jurídico  organizado  e  aptidão para alcançar a verdade.


   O  acervo  de  conhecimentos  que  a  Filosofia  do  Direito  proporciona  provém  de  três  classes  de pensadores:  filósofos,  juristas  e jurisfilósofos.  Como  a  Filosofia  é  uma  visão  universal  da realidade e o Direito se inscreve no quadro de uma ontologia regional, um sistema filosófico, para ser abrangente, há de considerar temas jurídicos básicos, como os problemas da justiça e da lei. Assim,  consagrados  filósofos,  como  Platão,  Aristóteles,  Tomás  de  Aquino,  Kant, Hegel, trouxeram valiosas contribuições à Filosofia do Direito. Em contrapartida, os juristas nem sempre se  fixam  na  perspectiva  da Ciência  do  Direito,  indo  além  do  simples  trabalho  de  exegese e sistematização do Direito vigente. Ora colocam em discussão os postulados da Jurisprudência, ora  submetem  os  institutos  jurídicos  a uma  crítica  em  seus  fundamentos,  situando  a  sua preocupação no âmbito da Filosofia do Direito. O grande veio, porém, que sedimenta e enriquece a  nossa  disciplina,  localiza-se  na  atividade  dos  jurisfilósofos,  daqueles  que,  genuinamente filósofos, conhecem a ciência jurídica.

   Enquanto filósofos e juristas desenvolvem a reflexão jurídica em campo restrito, com visão parcial e  preponderância  de  enfoque,  os  jurisfilósofos,  associando  o  conhecimento  das  correntes filosóficas  à  noção  das categorias  lógicas  do  Direito,  atuam  nos  domínios  da  iusfilosofia sem reservas  culturais,  objetivando  o  rigor  lógico  dos  conceitos  jurídicos  e  a adequação  do Direito Positivo aos valores humanos fundamentais.


2. Graus do Conhecimento


    O a priori fundamental à formação da cultura é a aptidão que o homem possui de conhecer e que exerce através da discriminação- faculdade de distinguir e relacionar as coisas. Estas podem ser assimiladas  pela  mente,  em  um  processo  de  cognição,  por  seus  traços mais  elementares  de entendimento,  por  seus  caracteres  gerais  ou ainda  por  seus  fundamentos  e  implicações  com outros  objetos  e fenômenos.  O  saber  comporta,  pois,  diversos  níveis,  que  variam conforme  o grau  de  relação  que  se  faz  entre  o  objeto  do  conhecimento  e  outros  fatos  e  fenômenos.  De acordo com a escala crescente de relação o conhecimento pode ser vulgar, científico e filosófico.

2.1 - Conhecimento Vulgar 
    O simples ato de viver proporciona ao homem algumas noções fundamentais sobre as coisas. Ao verificar os  fatos  da  natureza  e  os  atos  humanos,  ao  conviver  ou  utilizar-se  dos meios  de comunicação, ele recebe um complexo de informações ligadas a múltiplas áreas do saber. Assim, a leitura de um periódico, a consulta a um especialista, a observação do trabalho alheio levam-no a  adquirir  o  chamado  conhecimento  vulgar,  que  se  caracteriza  por ser  fragmentário, assistemático  e  por  revelar  a  posse  intelectual  das coisas  por  seus  aspectos  meramente exteriores  e  superficiais.  É  o  conhecimento  que  temos,  por  exemplo,  de  que  a  Terra desenvolve, no  espaço,  os  movimentos  de  rotação  e  de  translação  e  que  os  corpos     mais pesados do que o ar são atraídos ao solo. É um saber no   reflexivo, que alcança exclusivamente a noção  de  um  fenômeno     isolado,  sem  mostrar  a  sua relação  com  outra  série  de  fatos  e fenômenos.  No  âmbito  do  Direito  corresponde  ao  saber  do  rábula,  que     conhece  apenas  pela experiência,  despercebendo  a  harmonia  do     sistema  e  dos  princípios  que  lhe  informam  e  dão consistência.

    A  natureza  empírica  desse  saber  não  indica,  por  outro  lado,  que     toda  noção  adquirida  pela experiência  seja  do  tipo  vulgar,  pois  o  conhecimento  científico,  além  de  orientar-se  pela  razão, também recorre a essa  rica fonte. Em  face  da amplidão de conceitos, princípios e teorias que  a ciência  e  a  tecnologia  moderna  apresentam  e  que  impedem  ao homem  o  absoluto  domínio intelectual da realidade, o saber vulgar reveste-se também de importância, pois supre, de alguma forma, lacunas culturais que não podem ser preenchidas cientificamente.

2.2 - Conhecimento Científico.
    Mais  amplo  que  o  saber  vulgar  e menos  abrangente  que  o  filosófico,  o  conhecimento  científico consiste na  apreensão  mental  das  coisas  por  suas  causas  ou  razões,  através  de métodos especiais  de  investigação.  Ele  não  se  ocupa  de  acontecimentos isolados,  mas  supõe  a  visão ampla de uma determinada área do saber e ao contrário do conhecimento vulgar é reflexivo. No dizer de Icilio Vanni, é "uma cognição sistemática dos fatos e dos fenômenos, em que se coloca um  fato  em  relação  com  outros,  de  modo  a  descobrir  as  suas uniformidades  e  a  determinar  as suas leis".'Na esfera jurídica, o conhecimento científico não se caracteriza pela simples noção do conteúdo  e significado  da  lei.  Pressupõe  o  conceito  do  objeto  Direito  e  compreende a  visão unitária do sistema jurídico.

    Os  princípios  que  regem  a  natureza  em  geral  e  as  coisas  do homem  constituem  um  todo harmônico e uno, que não impõe, r si, qualquer divisão. Os destaques que os cientistas fazem, ao fracionar o mundo fenomênico em setores especializados, criam a multiplicidade das ciências. O zoneamento  científico  é  sempre  voluntarioso e  até  mesmo  arbitrário.  Para  o  mestre  Alessandro Groppali,  as  limitações  da  mente  humana  é  que  geram  a  divisão  do  campo  científico,  que "constitui um todo orgânico, uma cadeia que não pode partir-se, sem implicitamente transformar a sua fisionomia." O jurisfilósofo italiano compara  a necessidade de se dividir o saber humano em ciências, e com a necessidade de se dividir a História em períodos e idades.

2.3  Conhecimento  Filosófico.
    O  conhecimento  filosófico  representa  um  grau  a  mais  em abstração  e  em  generalidade.  O  espírito  humano não  se  satisfaz,  em  um  plano  de  existência, com  as  explicações  parciais dadas  pelas  diversas ciências  isoladas.  Os  fenômenos  científicos não  se dispõem  em  compartimentos  incomunicáveis,  estranhos  entre si,  e,  por isso,  o  homem quer descobrir a harmonia, a concatenação lógica, os nexos de adaptação e de complementação que governam toda a trama do real. Visando a estabelecer princípios e conclusões, ele toma por base de análise a universalidade  dos fatos e dos fenômenos  e, com fundamental importância, a própria  vida  humana.  Esse  objetivo  é  alcançado através  do  saber  filosófico.  Spencer,  ao comparar  este  conhecimento com  os  de  segundo  e  primeiro  graus,  considera-o  "um  saber totalmente unificado, em contraposição ao saber parcialmente unificado   (científico), e ao saber não unificado (vulgar)." Na Jurisprudência, o conhecimento filosófico tem por objeto de reflexão o conceito  do Direito,  os  elementos  constitutivos  deste,  seus  postulados  básicos, métodos  de cognição, teleologia e o estudo crítico-valorativo de suas leis e institutos fundamentais.


3. Conceito de Filosofia

   A estrutura do homem, revelada por seu cérebro e membros, mostra a condição de sua existência: conhecimento e ação. As circunstâncias que o envolvem, levam-no a conhecer;  conhecer  a  si próprio,  a realidade  exterior  e  a  relação  que se  estabelece  entre  si  e o mundo objetivo. Do pensamento transporta-se à ação: adapta o meio natural às suas condições e organiza  a  vida  gregária.  Ao  mesmo tempo  em  que  atua,  penetra  nos  segredos  da  natureza  e sonda  os mistérios  que  pesam  no  horizonte  de  sua  experiência.  No  seu  pensar e  no  seu  fazer abrem-se os caminhos para a Ciência e para a Filosofia. Enquanto que a primeira vai reunir um conjunto sistemático de conhecimentos, a segunda vai identificar-se como exercício da razão na busca perene da ordem do universo.

3.1  Definição  Etimológica  e  Semântia
   Nas  diversas fases  da História,  a  interpretação  do quadro  geral  da  existência  sempre  foi objetivo  intelectual  do  homem.  A  perplexidade  diante  do real  o  induziu à  reflexão,  na  tentativa  de  descobrir  a  verdade  das  coisas.  Já  os antigos procuravam  as  explicações  referentes  à  matéria,  à vida  e  aos  fenômenos que testemunhavam.  Mas,  se  a  prática  da  Filosofia  é  coeva  ao  homem, o  vocábulo  que  a  designa surgiu apenas no séc. VI a.C., formado pela junção das palavras gregas  philos e  sophia - "amigo da sabedoria".

   Atribui-se  ao filósofo  e matemático  grego Pitágoras de Samos,  a criação do neologismo.  Ao  ser indagado  quanto  à  sua  condição  de  pensador, teria  evitado  apresentar-se  como  sábio  - fato comum em sua época - preferindo, modestamente, dizer-se filósofo.

    A  palavra  filosofia,  de  Pitágoras  aos  dias  atuais,  sofreu  variação semântica.  De  amizade  à sabedoria, passou a designar, entre os gregos, a própria sabedoria. Com Platão (497-347 a.C.), expressou o conhecimento adquirido  pela reflexão: o  saber  depurado  pelo  método  dialético,  em que o espírito não assimila direta e imediatamente o conhecimento, mas se utiliza do processo de autodiscussão, de diálogo consigo próprio. Em Aristóteles (384-322 a.C.), o vocábulo significou o conjunto  de  conhecimentos  do  homem,  compreendendo os  domínios  da  Lógica,  Física, Metafísica  e  Ética.  Filósofo,  por conseguinte,  era  a  pessoa  que  dominava  todas  as  áreas  do saber, possuindo  a  macrovisão  das  coisas.  Não  há,  em  rigor,  mudança  de qualidade  entre  a concepção  de  Platão  e  a  de seu  discípulo.  O  que ocorre,  observa  García  Morente,  "é  que Aristóteles  é  um  grande espírito  que  faz  avançar  extraordinariamente  o  cabedal  dos conhecimentos adquiridos reflexivamente.

   A  Filosofia  começa  a  perder  o  seu  caráter  enciclopédico  quando a  Geometria,  na  Era  Antiga, adquire  autonomia  científica.  Na  Idade Média,  a  Teologia  se  desprende  da  scientia  altior,  o mesmo ocorrendo com a Aritmética, em face do avançado estudo efetuado pelos árabes. A partir do  séc.  XVII,  com  o  desenvolvimento  que  se  opera  em diversas  áreas  do  saber,  surgem  as especializações  e,  em  conseqüência,  algumas  ciências  se  destacam  do  tronco  filosófico.  Pelo esforço de  Galileu  e,  posteriormente,  de  Newton,  a  Física  também  se  estrutura  em  métodos  e princípios próprios. Idêntico fenômeno se passa, no séc. XIX, com a Biologia, com a História, com o  Direito.  Na  quadra atual  destacam-se  a  Psicologia,  a  Sociologia.  Esse  processo  de desprendimento continua e, em rigor, apenas não se destacaram a Ontologia e a Gnoseologia: a teoria  dos  objetos  e  a  teoria  do  conhecimento  integram  a Filosofia,  pois  possuem convergência para o universal, para a totalidade das coisas.

3.2  As  Especializações  Jurídicas  e  o  Fenômeno  de  Desprendimento  de  Matéria
    Estará  o Direito,  à  semelhança  do  que  se  passou com  a  Filosofia,  suscetível  de  um  processo  de desprendimento  de matéria?  No  período  histórico  que  antecedeu  o  Direito  Romano, a Jurisprudência era, na realidade, um corpo de regras que não apresentava divisões. Abrangia, ao mesmo tempo, preceitos que disciplinavam os mais variados aspectos da vida social. Com o sistema romano, contudo, surge a separação entre o Direito Público e o Privado e, mais tarde, a subdivisão das duas classes, com novos ramos se despontando na árvore jurídica, conformados a uma sistemática de métodos e princípios particulares.

   Se  outrora  os  juristas  possuíam  saber  enciclopédico  do  Direito,     atuàlmente  esse  domínio absoluto de conhecimento vai se tornando   inacessível, em face  do crescente  alargamento nos limites  do  território  jurídico  e  pela  complexidade  da  matéria  legislativa.  Seguirá  daí que,  num futuro não previsível, as novas províncias jurídicas irão se alhear umas das outras, a ponto de se tornarem estranhas?

   A  semelhança  do  processo  de  evolução  jurídica  com  a  atomização  do  objeto da  Filosofia  é apenas  acidental.  As  especializações  que     surgem  não  provocam  a  mudança  conceptual  do Direito, como  se passou  com  a  Filosofia, nem  alteram  o seu  objeto  de  estudo:  correspondem  a um  imperativo  de  natureza  apenas  metodológica.  O  fato de  as  disciplinas  jurídicas  possuírem uma  teoria  particular,  alguns princípios  hermenêuticos  próprios,  valores  típicos,  não  poderá estabelecer  um  abismo  ou  cisão  entre  as  suas  áreas  de  estudo.  A  pesquisa unilateral  de  um ramo  jurídico,  quando  desenvolvida  no  plano  estritamente  teórico  e  alheio  ao  Direito  Positivo, pode  conduzir  a  uma visão  hermética  e  revelar  distâncias  científicas  comprometedoras da unidade imanente  ao Direito.  Quando, porém,  a especialização  se forma à luz da Dogmática Jurídica, no estudo e sistematização de um ramo, a interligação e o parentesco das disciplinas se patenteiam.  E o  fator  decisivo  que  impede  a  desagregação  interna  da  Jurisprudência é  a vinculação de suas partes a um sistema  unitário, em um nexo de complementação e coerência. Ademais, cada  positivação do Direito toma  por  base a mesma realidade  social e  expressa igual ideologia.

3.3  Concepção  Atual  da  Filosofia. 
   Modernamente  a  Filosofia  se identifica  como  método  de reflexão pelo qual o homem se empenha em interpretar a universalidade das coisas Não exige a compreensão  geral de  todas  as  coisas:  algo  inatingível,  atualmente,  em  face  da verdadeira explosão de conhecimentos que se opera no campo científico.

   Leibniz,  no séc.  XVII,  foi,  provavelmente,  o último dos filósofos a  dominar todo  o saber  de sua época.  Quando  se  a  afirma  que  a Filosofia  constitui  a  noção  das  coisas  por  seu  aspecto universal, se deseja expressar, em realidade, que, ao fazer a reflexão sobre cada objeto ou fato, o filósofo deve premunir-se de todos os conhecimentos pertinentes ao assunto a ser tratado.

    A  Filosofia  caracteriza-se  como  indagação  ou  busca  perene  do conhecimento,  mediante  a investigação dos primeiros princípios ou últimas causas. O espírito filósofo não se satisfaz com a leitura dinâmica  dos  fatos  ou com  simples  observações.  Ele  questiona  sempre  e,  de  cada resposta obtida, passa a novas perguntas, até alcançar a essência das coisas.

    A  Filosofia  corresponde  a  uma  atividade  espontânea,  instintiva, pela  qual  o  homem  procura captar  a  realidade  como  um  todo  e apreender  o  profundo  significado  dos  objetos.  A  sua  única motivação é  o  amor  à  sabedoria.  A  reflexão  se  faz  desinteressada,  numa  expansão natural  do espírito e, por isso, é pensamento independente e autêntico.

    Mas  a  Filosofia  não  é  puro  exercício  mental,  atividade  lúdica  ou  devaneio.  Como  modelo  de interpretação,  ela  se  projeta  na  realidade  concreta,  influenciando  as  ciências,  o  comportamento dos  homens,  os rumos  da  Humanidade.  As  ciências,  ao  analisar  e  fazer  a  crítica  em seus postulados  básicos  e  na delimitação  de  seu  campo  de  pesquisa.  Cada ciência  acha-se comprometida com uma determinada ordem de conhecimentos e o seu conjunto não fornece uma noção  universal,  mas  visões parciais,  setorizadas.  À  Filosofia  compete  promover  a  grande conexão entre todas as perspectivas e ser, assim, a grande intérprete da realidade.

   O seu papel não é apenas o de decodificar o mundo objetivo, pois também desenvolve a crítica da conduta humana e do saber acumulado.

    Ao  considerar  a  universalidade  dos  objetos  e  revelar  o  sentido  da vida,  indica  aos  homens  os seus valores fundamentais e orienta os caminhos da Humanidade. Na expressão de Will Durant "a ciência dá-nos o conhecimento, mas somente a Filosofia nos pode conferir sabedoria."


4. A Filosofia do Direito

4.1  Noção. 
   Ao  criar  modelos  de  comportamento  social,  à  luz  dos valores  de  conservação  e desenvolvimento  do  homem,  o  Direito  torna possível  a  convivência  e  participa,  por  sua importância e  como  área definida do  saber,  na  ordem  geral  das  coisas.  Como  objeto  do conhecimento, não pode ser considerado parte destacada da realidade e cultivado isoladamente. A sua compreensão precisa ser alcançada na visão universal dos fatos e fenômenos. É certo que o  seu  conhecimento científico  atende  às  exigências  operacionais  de  criação, exegese  e aplicação, mas revela-se insuficiente para preservar a plena correspondência entre os conteúdos normativos e a idéia do  ius .

   Há, pois, um papel relevante a ser cumprido pela Filosofia na esfera jurídica. Como produto da experiência,  o  Direito, em  sua concreção  fática,  pode  adotar  diferentes  ideologias  e  assumir variados  modelos.  As  formações  jurídicas  não  se  fazem  alheias  às  correntes  de  pensamento: pressupõem  sempre  uma  opção  ideológica,  uma interpretação  objetiva  da  realidade.  Tal  é  a importância da  scientia altior para esse campo do pensamento, que não se consegue chegar ao Direito  legítimo  sem  a  reflexão  filosófica.  É  que  o  fenômeno jurídico,  por  influenciar  a  vida humana,  deve  ser  estudado  paralelamente  à  análise  do  homem,  e  as  suas  formulações  devem desenvolver   projetos homogêneos de existência.

   Tal assertiva é válida também para os   redutos da Filosofia do Direito, onde praticamente tudo é passível de     discussão.  A  controvérsia  é própria e  imanente  à Filosofia  e em nada  se    poderá estranhar a pluralidade de opiniões sobre um mesmo objeto. Esta característica do pensamento filosófico  não  impede,  todavia,  ao     longo  dos  anos,  que  novos  princípios  e  teorias  senão consagrados     mundialmente.  Em  um  processo  longo  de  sedimentação,  formam-se     também correntes  diversas,  interpretadoras  da  realidade  jurídica.  Pela     sua  racionalidade  e  força  lógica de  expressão,  preeminentes  jurisfilósofos  aceleram  a  marcha  de  evolução  do  pensamento, estabelecendo novas veredas dialéticas e atraindo seguidores.

    Como objeto  cultural dotado de complexidade,  o Direito comporta  diferentes planos de estudo. Em sua dimensão legal, é abordado pela Ciência do Direito, disciplina fundamental que interpreta e sistematiza o ordenamento vigente, sem preocupar-se com o problema axiológico. Do ponto de vista  fatual,  é  tratado  pela  Sociologia  do Direito,  que  considera  as  relações  entre  o  fenômeno jurídico  e a sociedade,  com  atenção  básica  para a adaptação  do Direito à realidade  social. Não analisa as  categorias  lógicas,  nem  cogita  do  dever-ser e de  valores.  Sob o  aspecto evolutivo,  o fenômeno  jurídico  é  objeto da  História  do  Direito,  que  pesquisa  a  etiologia  e  o desenvolvimento das  instituições,  com  a  análise  concomitante  dos  fatos  históricos.  Outro  plano de investigação é o comparativo, pelo qual se faz o cotejo dos sistemas pertencentes a diferentes povos.  Dele  se  ocupa  o  Direi to  Comparado,  disciplina  auxiliar  que  objetiva  esclarecer  o sentido do progresso científico e registrar a consolidação de novas tendências. Quando a atitude filosófica se projeta nos domínios da Jurisprudência, tomando o fenômeno jurídico por objeto de indagação,  a análise  se  processa  em  um  riquíssimo  plano,  onde  se  questionam problemas  da maior relevância  para  a  organização  social.  O  estudo ontológico  do  Direito,  a pesquisa  de seus elementos universais e necessários, o exame axiológico de suas formas de expressão constituem a matéria de reflexão da Filosofia Jurídica.

    Podemos  dizer,  resumidamente,  que  a  Filosofia  Jurídica  consiste na  pesquisa  conceptual  do Direito  e  implicações  lógicas,  por  seus princípios  e  razões  mais  elevados,  e  na  reflexão  crítico-valorativa das instituições jurídicas.

4.2  Objeto
    Como  estudo  reflexivo,  que  aspira  à  compreensão  do Direito  dentro  de  uma  visão harmônica da realidade, a Filosofia Jurídica dispõe de um amplo temário de análise que se divide em  dois grandes  planos  de  reflexão:  um  de  natureza  epistemológica,  onde  se pesquisa  o conceito  do  Direito  e  assuntos  afins,  e  outro  de  caráter axiológico,  no  qual  se  submetem  as instituições jurídicas a um exame crítico valorativo.

    A  primeira  grande  tarefa  atribuída  à  Filosofia  Jurídica  é  a  de esclarecer,  em  seus  aspectos universais  e necessários,  a noção  do Direito.  Uma reflexão segura  sobre temas jurídicos  requer uma ampla  noção  do  ius .  Tal  estudo  envolve  o  exame  de  numerosas questões,  sendo  que  a posição  a ser  assumida  pelo  jurisfilósofo  fica na  dependência  de  suas  inclinações  ideológicas. Vê-se,  por  aí,  a íntima  relação  existente  entre  a  Filosofia  geral  e  a  Filosofia  do Direito,  pois  as grandes correntes filosóficas possuem vigor e se irradiam por numerosos ramos do saber.

    A elaboração de um conceito do Direito é ato complexo, que impõe opções doutrinárias de longo alcance  na  problemática  jurídica.  Daí  por  que  o  exercício  dessa  liberdade  cultural  pressupõe  a experiência jurídica e o conhecimento das alternativas filosóficas.

    De acordo com o paralelo firmado por Emmanuel Kant, enquanto a Filosofia do Direito responde a  pergunta  Quid  Jus?  (o  que  é  o Direito?),  à  Ciência  Jurídica  compete  esclarecer  a  indagação "Quid Juris?" (o que é de Direito?). De fato, a tarefa de definir o Direito não se acha reservada às disciplinas jurídicas particulares, pois estas analisam apenas uma parcela da realidade jurídica e estabelecem  os  balizamentos de  legalidade.  A  Dogmática  Civil,  por  exemplo,  define  o  seu próprio campo de estudo e não está em condições de definir o todo no qual se insere. A Ciência Penal enumera as suas fontes de conhecimento, mas não está credenciada a informar sobre as do Direito em geral. Como a Filosofia do Direito contempla a árvore jurídica em sua totalidade e na sua relação com as coisas em geral, a ela está reservada a missão de dizer o que é o Direito e buscar as soluções para os problemas vinculados a essa indagação.

    Paralelamente  ao  problema  conceptual,  nessa  ordem  de  pesquisas  emergem  questões fundamentais,  como  a  relativa  aos  elementos     constitutivos  do  Direito;  a  indagação  se  este compõe-se  de  norma  e é  a  expressão  da  vontade  do  Estado;  se  a  coação  faz  parte  da essência do Direito; se a lei injusta é Direito e, como tal, obrigatória; se a efetividade é essencial à validade do Direito etc.

    A  outra  tarefa  da  Filosofia  do  Direito,  de  natureza  axiológica,     é  de  alcance  mais  prático  e consiste  na  apreciação  valorativa  das  leis, institutos  ou  do  sistema  jurídico.  A  pesquisa  pode situar-se  no  plano de  lege  lata ,  com  a  crítica  ao  Direito  vigente,  ou  no  de lege  ferenda , em  um ensaio do Direito ideal a ser criado. Durante esta pesquisa o pensamento iusfilósofico é norteado por  princípios  éticos  e,  fundamentalmente,  pelo  valor justiça,  por  intermédio  dos  quais  avalia o ordenamento, para justificá-lo  ou negar-lhe  validade. Esta segunda parte está mais ligada  aos imperativos da vida social e visa ao enriquecimento da Ciência do Direito, pois julga os critérios da lei em função dos valores  humanos e sociais. Quando se examina a figura da eutanásia, por exemplo, à luz  do que determina  o Código  Penal, o  estudo é de  ciência jurídica, mas quando  a atividade intelectual extrapola esse plano, a fim de julgar o critério legal com base nos postulados éticos,a tarefa desenvolve-se no âmbito e com os métodos da Filosofia do Direito.

    Enquanto a investigação epistemológica  se converge para  o Direito  em sua forma  pura  e  é do interesse  restrito  dos  jurisprudentes e  filósofos  do  Direito,  a  perspectiva  axiológica,  que  se concentra  em torno  do  Direito  como  regulamentação  concreta  de  fatos  sociais,  no propósito  de ajustá-lo  à  natureza  positiva  das  coisas,  é  matéria  de interesse  também  do  homem  simples  do povo,  na  qualidade  de destinatário  do  Direito  Positivo  e  como  ente  capaz  de  se posicionar valorativamente.

    Alguns  autores,  como  Icilio  Vanni  e  Del  Vecchio,  apontam ainda,  como  parte  do  objeto,  a pesquisa histórica,  que  teria  a missão de  averiguar  os  fatores  que  determinam  a elaboração  do Direito e o seu desenvolvimento. Reconhecemos que esta ordem de indagação é relevante, mas que se acha afeta, hoje, à Sociologia do Direito, disciplina que já alcançou autonomia científica.








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