quarta-feira, 11 de abril de 2012

NOÇÃO E OBJETIVO DA FILOSOFIA DO DIREITO ( Paulo Dourado Gusmão ) 


1. Considerações Prévias


   Ao  se  pretender  investigar  o  conhecimento  jurídico  pela  via filosófica  é  necessário, primeiramente, que  este  caminho  seja  familiar ao  pesquisador,  enquadrando-se  nos  limites  de sua  experiência.  Sem a prévia  noção  da  Filosofia  geral,  por  seus  métodos  e  funções,  não é possível alcançar a plena compreensão da Filosofia do Direito, pois, enquanto aquela é gênero, esta  é  espécie,  e  tudo  quanto  predicamos à  primeira  estamos,  igualmente,  predicando  à segunda. A cultura filosófica somente prospera no espírito afeito à reflexão e aberto aos grandes temas que envolvem a natureza e o homem. Se é verdade que a condição de iusfilósofo não se adquire  por  título  universitário, senão  pela  constância  do  pensamento  dialético,  também  é  certo que somente  atinge  a  situação  de  jurisfilósofo  o  jurista  que  exercita,  como hábito,  a  atitude filosófica.  E  que  a cultura  superior  do  ius não  se forma  com  o  simples  acúmulo  de  informações que  os  tratados  apresentam;  ela  é,  ao  mesmo  tempo,  saber  jurídico  organizado  e  aptidão para alcançar a verdade.


   O  acervo  de  conhecimentos  que  a  Filosofia  do  Direito  proporciona  provém  de  três  classes  de pensadores:  filósofos,  juristas  e jurisfilósofos.  Como  a  Filosofia  é  uma  visão  universal  da realidade e o Direito se inscreve no quadro de uma ontologia regional, um sistema filosófico, para ser abrangente, há de considerar temas jurídicos básicos, como os problemas da justiça e da lei. Assim,  consagrados  filósofos,  como  Platão,  Aristóteles,  Tomás  de  Aquino,  Kant, Hegel, trouxeram valiosas contribuições à Filosofia do Direito. Em contrapartida, os juristas nem sempre se  fixam  na  perspectiva  da Ciência  do  Direito,  indo  além  do  simples  trabalho  de  exegese e sistematização do Direito vigente. Ora colocam em discussão os postulados da Jurisprudência, ora  submetem  os  institutos  jurídicos  a uma  crítica  em  seus  fundamentos,  situando  a  sua preocupação no âmbito da Filosofia do Direito. O grande veio, porém, que sedimenta e enriquece a  nossa  disciplina,  localiza-se  na  atividade  dos  jurisfilósofos,  daqueles  que,  genuinamente filósofos, conhecem a ciência jurídica.

   Enquanto filósofos e juristas desenvolvem a reflexão jurídica em campo restrito, com visão parcial e  preponderância  de  enfoque,  os  jurisfilósofos,  associando  o  conhecimento  das  correntes filosóficas  à  noção  das categorias  lógicas  do  Direito,  atuam  nos  domínios  da  iusfilosofia sem reservas  culturais,  objetivando  o  rigor  lógico  dos  conceitos  jurídicos  e  a adequação  do Direito Positivo aos valores humanos fundamentais.


2. Graus do Conhecimento


    O a priori fundamental à formação da cultura é a aptidão que o homem possui de conhecer e que exerce através da discriminação- faculdade de distinguir e relacionar as coisas. Estas podem ser assimiladas  pela  mente,  em  um  processo  de  cognição,  por  seus  traços mais  elementares  de entendimento,  por  seus  caracteres  gerais  ou ainda  por  seus  fundamentos  e  implicações  com outros  objetos  e fenômenos.  O  saber  comporta,  pois,  diversos  níveis,  que  variam conforme  o grau  de  relação  que  se  faz  entre  o  objeto  do  conhecimento  e  outros  fatos  e  fenômenos.  De acordo com a escala crescente de relação o conhecimento pode ser vulgar, científico e filosófico.

2.1 - Conhecimento Vulgar 
    O simples ato de viver proporciona ao homem algumas noções fundamentais sobre as coisas. Ao verificar os  fatos  da  natureza  e  os  atos  humanos,  ao  conviver  ou  utilizar-se  dos meios  de comunicação, ele recebe um complexo de informações ligadas a múltiplas áreas do saber. Assim, a leitura de um periódico, a consulta a um especialista, a observação do trabalho alheio levam-no a  adquirir  o  chamado  conhecimento  vulgar,  que  se  caracteriza  por ser  fragmentário, assistemático  e  por  revelar  a  posse  intelectual  das coisas  por  seus  aspectos  meramente exteriores  e  superficiais.  É  o  conhecimento  que  temos,  por  exemplo,  de  que  a  Terra desenvolve, no  espaço,  os  movimentos  de  rotação  e  de  translação  e  que  os  corpos     mais pesados do que o ar são atraídos ao solo. É um saber no   reflexivo, que alcança exclusivamente a noção  de  um  fenômeno     isolado,  sem  mostrar  a  sua relação  com  outra  série  de  fatos  e fenômenos.  No  âmbito  do  Direito  corresponde  ao  saber  do  rábula,  que     conhece  apenas  pela experiência,  despercebendo  a  harmonia  do     sistema  e  dos  princípios  que  lhe  informam  e  dão consistência.

    A  natureza  empírica  desse  saber  não  indica,  por  outro  lado,  que     toda  noção  adquirida  pela experiência  seja  do  tipo  vulgar,  pois  o  conhecimento  científico,  além  de  orientar-se  pela  razão, também recorre a essa  rica fonte. Em  face  da amplidão de conceitos, princípios e teorias que  a ciência  e  a  tecnologia  moderna  apresentam  e  que  impedem  ao homem  o  absoluto  domínio intelectual da realidade, o saber vulgar reveste-se também de importância, pois supre, de alguma forma, lacunas culturais que não podem ser preenchidas cientificamente.

2.2 - Conhecimento Científico.
    Mais  amplo  que  o  saber  vulgar  e menos  abrangente  que  o  filosófico,  o  conhecimento  científico consiste na  apreensão  mental  das  coisas  por  suas  causas  ou  razões,  através  de métodos especiais  de  investigação.  Ele  não  se  ocupa  de  acontecimentos isolados,  mas  supõe  a  visão ampla de uma determinada área do saber e ao contrário do conhecimento vulgar é reflexivo. No dizer de Icilio Vanni, é "uma cognição sistemática dos fatos e dos fenômenos, em que se coloca um  fato  em  relação  com  outros,  de  modo  a  descobrir  as  suas uniformidades  e  a  determinar  as suas leis".'Na esfera jurídica, o conhecimento científico não se caracteriza pela simples noção do conteúdo  e significado  da  lei.  Pressupõe  o  conceito  do  objeto  Direito  e  compreende a  visão unitária do sistema jurídico.

    Os  princípios  que  regem  a  natureza  em  geral  e  as  coisas  do homem  constituem  um  todo harmônico e uno, que não impõe, r si, qualquer divisão. Os destaques que os cientistas fazem, ao fracionar o mundo fenomênico em setores especializados, criam a multiplicidade das ciências. O zoneamento  científico  é  sempre  voluntarioso e  até  mesmo  arbitrário.  Para  o  mestre  Alessandro Groppali,  as  limitações  da  mente  humana  é  que  geram  a  divisão  do  campo  científico,  que "constitui um todo orgânico, uma cadeia que não pode partir-se, sem implicitamente transformar a sua fisionomia." O jurisfilósofo italiano compara  a necessidade de se dividir o saber humano em ciências, e com a necessidade de se dividir a História em períodos e idades.

2.3  Conhecimento  Filosófico.
    O  conhecimento  filosófico  representa  um  grau  a  mais  em abstração  e  em  generalidade.  O  espírito  humano não  se  satisfaz,  em  um  plano  de  existência, com  as  explicações  parciais dadas  pelas  diversas ciências  isoladas.  Os  fenômenos  científicos não  se dispõem  em  compartimentos  incomunicáveis,  estranhos  entre si,  e,  por isso,  o  homem quer descobrir a harmonia, a concatenação lógica, os nexos de adaptação e de complementação que governam toda a trama do real. Visando a estabelecer princípios e conclusões, ele toma por base de análise a universalidade  dos fatos e dos fenômenos  e, com fundamental importância, a própria  vida  humana.  Esse  objetivo  é  alcançado através  do  saber  filosófico.  Spencer,  ao comparar  este  conhecimento com  os  de  segundo  e  primeiro  graus,  considera-o  "um  saber totalmente unificado, em contraposição ao saber parcialmente unificado   (científico), e ao saber não unificado (vulgar)." Na Jurisprudência, o conhecimento filosófico tem por objeto de reflexão o conceito  do Direito,  os  elementos  constitutivos  deste,  seus  postulados  básicos, métodos  de cognição, teleologia e o estudo crítico-valorativo de suas leis e institutos fundamentais.


3. Conceito de Filosofia

   A estrutura do homem, revelada por seu cérebro e membros, mostra a condição de sua existência: conhecimento e ação. As circunstâncias que o envolvem, levam-no a conhecer;  conhecer  a  si próprio,  a realidade  exterior  e  a  relação  que se  estabelece  entre  si  e o mundo objetivo. Do pensamento transporta-se à ação: adapta o meio natural às suas condições e organiza  a  vida  gregária.  Ao  mesmo tempo  em  que  atua,  penetra  nos  segredos  da  natureza  e sonda  os mistérios  que  pesam  no  horizonte  de  sua  experiência.  No  seu  pensar e  no  seu  fazer abrem-se os caminhos para a Ciência e para a Filosofia. Enquanto que a primeira vai reunir um conjunto sistemático de conhecimentos, a segunda vai identificar-se como exercício da razão na busca perene da ordem do universo.

3.1  Definição  Etimológica  e  Semântia
   Nas  diversas fases  da História,  a  interpretação  do quadro  geral  da  existência  sempre  foi objetivo  intelectual  do  homem.  A  perplexidade  diante  do real  o  induziu à  reflexão,  na  tentativa  de  descobrir  a  verdade  das  coisas.  Já  os antigos procuravam  as  explicações  referentes  à  matéria,  à vida  e  aos  fenômenos que testemunhavam.  Mas,  se  a  prática  da  Filosofia  é  coeva  ao  homem, o  vocábulo  que  a  designa surgiu apenas no séc. VI a.C., formado pela junção das palavras gregas  philos e  sophia - "amigo da sabedoria".

   Atribui-se  ao filósofo  e matemático  grego Pitágoras de Samos,  a criação do neologismo.  Ao  ser indagado  quanto  à  sua  condição  de  pensador, teria  evitado  apresentar-se  como  sábio  - fato comum em sua época - preferindo, modestamente, dizer-se filósofo.

    A  palavra  filosofia,  de  Pitágoras  aos  dias  atuais,  sofreu  variação semântica.  De  amizade  à sabedoria, passou a designar, entre os gregos, a própria sabedoria. Com Platão (497-347 a.C.), expressou o conhecimento adquirido  pela reflexão: o  saber  depurado  pelo  método  dialético,  em que o espírito não assimila direta e imediatamente o conhecimento, mas se utiliza do processo de autodiscussão, de diálogo consigo próprio. Em Aristóteles (384-322 a.C.), o vocábulo significou o conjunto  de  conhecimentos  do  homem,  compreendendo os  domínios  da  Lógica,  Física, Metafísica  e  Ética.  Filósofo,  por conseguinte,  era  a  pessoa  que  dominava  todas  as  áreas  do saber, possuindo  a  macrovisão  das  coisas.  Não  há,  em  rigor,  mudança  de qualidade  entre  a concepção  de  Platão  e  a  de seu  discípulo.  O  que ocorre,  observa  García  Morente,  "é  que Aristóteles  é  um  grande espírito  que  faz  avançar  extraordinariamente  o  cabedal  dos conhecimentos adquiridos reflexivamente.

   A  Filosofia  começa  a  perder  o  seu  caráter  enciclopédico  quando a  Geometria,  na  Era  Antiga, adquire  autonomia  científica.  Na  Idade Média,  a  Teologia  se  desprende  da  scientia  altior,  o mesmo ocorrendo com a Aritmética, em face do avançado estudo efetuado pelos árabes. A partir do  séc.  XVII,  com  o  desenvolvimento  que  se  opera  em diversas  áreas  do  saber,  surgem  as especializações  e,  em  conseqüência,  algumas  ciências  se  destacam  do  tronco  filosófico.  Pelo esforço de  Galileu  e,  posteriormente,  de  Newton,  a  Física  também  se  estrutura  em  métodos  e princípios próprios. Idêntico fenômeno se passa, no séc. XIX, com a Biologia, com a História, com o  Direito.  Na  quadra atual  destacam-se  a  Psicologia,  a  Sociologia.  Esse  processo  de desprendimento continua e, em rigor, apenas não se destacaram a Ontologia e a Gnoseologia: a teoria  dos  objetos  e  a  teoria  do  conhecimento  integram  a Filosofia,  pois  possuem convergência para o universal, para a totalidade das coisas.

3.2  As  Especializações  Jurídicas  e  o  Fenômeno  de  Desprendimento  de  Matéria
    Estará  o Direito,  à  semelhança  do  que  se  passou com  a  Filosofia,  suscetível  de  um  processo  de desprendimento  de matéria?  No  período  histórico  que  antecedeu  o  Direito  Romano, a Jurisprudência era, na realidade, um corpo de regras que não apresentava divisões. Abrangia, ao mesmo tempo, preceitos que disciplinavam os mais variados aspectos da vida social. Com o sistema romano, contudo, surge a separação entre o Direito Público e o Privado e, mais tarde, a subdivisão das duas classes, com novos ramos se despontando na árvore jurídica, conformados a uma sistemática de métodos e princípios particulares.

   Se  outrora  os  juristas  possuíam  saber  enciclopédico  do  Direito,     atuàlmente  esse  domínio absoluto de conhecimento vai se tornando   inacessível, em face  do crescente  alargamento nos limites  do  território  jurídico  e  pela  complexidade  da  matéria  legislativa.  Seguirá  daí que,  num futuro não previsível, as novas províncias jurídicas irão se alhear umas das outras, a ponto de se tornarem estranhas?

   A  semelhança  do  processo  de  evolução  jurídica  com  a  atomização  do  objeto da  Filosofia  é apenas  acidental.  As  especializações  que     surgem  não  provocam  a  mudança  conceptual  do Direito, como  se passou  com  a  Filosofia, nem  alteram  o seu  objeto  de  estudo:  correspondem  a um  imperativo  de  natureza  apenas  metodológica.  O  fato de  as  disciplinas  jurídicas  possuírem uma  teoria  particular,  alguns princípios  hermenêuticos  próprios,  valores  típicos,  não  poderá estabelecer  um  abismo  ou  cisão  entre  as  suas  áreas  de  estudo.  A  pesquisa unilateral  de  um ramo  jurídico,  quando  desenvolvida  no  plano  estritamente  teórico  e  alheio  ao  Direito  Positivo, pode  conduzir  a  uma visão  hermética  e  revelar  distâncias  científicas  comprometedoras da unidade imanente  ao Direito.  Quando, porém,  a especialização  se forma à luz da Dogmática Jurídica, no estudo e sistematização de um ramo, a interligação e o parentesco das disciplinas se patenteiam.  E o  fator  decisivo  que  impede  a  desagregação  interna  da  Jurisprudência é  a vinculação de suas partes a um sistema  unitário, em um nexo de complementação e coerência. Ademais, cada  positivação do Direito toma  por  base a mesma realidade  social e  expressa igual ideologia.

3.3  Concepção  Atual  da  Filosofia. 
   Modernamente  a  Filosofia  se identifica  como  método  de reflexão pelo qual o homem se empenha em interpretar a universalidade das coisas Não exige a compreensão  geral de  todas  as  coisas:  algo  inatingível,  atualmente,  em  face  da verdadeira explosão de conhecimentos que se opera no campo científico.

   Leibniz,  no séc.  XVII,  foi,  provavelmente,  o último dos filósofos a  dominar todo  o saber  de sua época.  Quando  se  a  afirma  que  a Filosofia  constitui  a  noção  das  coisas  por  seu  aspecto universal, se deseja expressar, em realidade, que, ao fazer a reflexão sobre cada objeto ou fato, o filósofo deve premunir-se de todos os conhecimentos pertinentes ao assunto a ser tratado.

    A  Filosofia  caracteriza-se  como  indagação  ou  busca  perene  do conhecimento,  mediante  a investigação dos primeiros princípios ou últimas causas. O espírito filósofo não se satisfaz com a leitura dinâmica  dos  fatos  ou com  simples  observações.  Ele  questiona  sempre  e,  de  cada resposta obtida, passa a novas perguntas, até alcançar a essência das coisas.

    A  Filosofia  corresponde  a  uma  atividade  espontânea,  instintiva, pela  qual  o  homem  procura captar  a  realidade  como  um  todo  e apreender  o  profundo  significado  dos  objetos.  A  sua  única motivação é  o  amor  à  sabedoria.  A  reflexão  se  faz  desinteressada,  numa  expansão natural  do espírito e, por isso, é pensamento independente e autêntico.

    Mas  a  Filosofia  não  é  puro  exercício  mental,  atividade  lúdica  ou  devaneio.  Como  modelo  de interpretação,  ela  se  projeta  na  realidade  concreta,  influenciando  as  ciências,  o  comportamento dos  homens,  os rumos  da  Humanidade.  As  ciências,  ao  analisar  e  fazer  a  crítica  em seus postulados  básicos  e  na delimitação  de  seu  campo  de  pesquisa.  Cada ciência  acha-se comprometida com uma determinada ordem de conhecimentos e o seu conjunto não fornece uma noção  universal,  mas  visões parciais,  setorizadas.  À  Filosofia  compete  promover  a  grande conexão entre todas as perspectivas e ser, assim, a grande intérprete da realidade.

   O seu papel não é apenas o de decodificar o mundo objetivo, pois também desenvolve a crítica da conduta humana e do saber acumulado.

    Ao  considerar  a  universalidade  dos  objetos  e  revelar  o  sentido  da vida,  indica  aos  homens  os seus valores fundamentais e orienta os caminhos da Humanidade. Na expressão de Will Durant "a ciência dá-nos o conhecimento, mas somente a Filosofia nos pode conferir sabedoria."


4. A Filosofia do Direito

4.1  Noção. 
   Ao  criar  modelos  de  comportamento  social,  à  luz  dos valores  de  conservação  e desenvolvimento  do  homem,  o  Direito  torna possível  a  convivência  e  participa,  por  sua importância e  como  área definida do  saber,  na  ordem  geral  das  coisas.  Como  objeto  do conhecimento, não pode ser considerado parte destacada da realidade e cultivado isoladamente. A sua compreensão precisa ser alcançada na visão universal dos fatos e fenômenos. É certo que o  seu  conhecimento científico  atende  às  exigências  operacionais  de  criação, exegese  e aplicação, mas revela-se insuficiente para preservar a plena correspondência entre os conteúdos normativos e a idéia do  ius .

   Há, pois, um papel relevante a ser cumprido pela Filosofia na esfera jurídica. Como produto da experiência,  o  Direito, em  sua concreção  fática,  pode  adotar  diferentes  ideologias  e  assumir variados  modelos.  As  formações  jurídicas  não  se  fazem  alheias  às  correntes  de  pensamento: pressupõem  sempre  uma  opção  ideológica,  uma interpretação  objetiva  da  realidade.  Tal  é  a importância da  scientia altior para esse campo do pensamento, que não se consegue chegar ao Direito  legítimo  sem  a  reflexão  filosófica.  É  que  o  fenômeno jurídico,  por  influenciar  a  vida humana,  deve  ser  estudado  paralelamente  à  análise  do  homem,  e  as  suas  formulações  devem desenvolver   projetos homogêneos de existência.

   Tal assertiva é válida também para os   redutos da Filosofia do Direito, onde praticamente tudo é passível de     discussão.  A  controvérsia  é própria e  imanente  à Filosofia  e em nada  se    poderá estranhar a pluralidade de opiniões sobre um mesmo objeto. Esta característica do pensamento filosófico  não  impede,  todavia,  ao     longo  dos  anos,  que  novos  princípios  e  teorias  senão consagrados     mundialmente.  Em  um  processo  longo  de  sedimentação,  formam-se     também correntes  diversas,  interpretadoras  da  realidade  jurídica.  Pela     sua  racionalidade  e  força  lógica de  expressão,  preeminentes  jurisfilósofos  aceleram  a  marcha  de  evolução  do  pensamento, estabelecendo novas veredas dialéticas e atraindo seguidores.

    Como objeto  cultural dotado de complexidade,  o Direito comporta  diferentes planos de estudo. Em sua dimensão legal, é abordado pela Ciência do Direito, disciplina fundamental que interpreta e sistematiza o ordenamento vigente, sem preocupar-se com o problema axiológico. Do ponto de vista  fatual,  é  tratado  pela  Sociologia  do Direito,  que  considera  as  relações  entre  o  fenômeno jurídico  e a sociedade,  com  atenção  básica  para a adaptação  do Direito à realidade  social. Não analisa as  categorias  lógicas,  nem  cogita  do  dever-ser e de  valores.  Sob o  aspecto evolutivo,  o fenômeno  jurídico  é  objeto da  História  do  Direito,  que  pesquisa  a  etiologia  e  o desenvolvimento das  instituições,  com  a  análise  concomitante  dos  fatos  históricos.  Outro  plano de investigação é o comparativo, pelo qual se faz o cotejo dos sistemas pertencentes a diferentes povos.  Dele  se  ocupa  o  Direi to  Comparado,  disciplina  auxiliar  que  objetiva  esclarecer  o sentido do progresso científico e registrar a consolidação de novas tendências. Quando a atitude filosófica se projeta nos domínios da Jurisprudência, tomando o fenômeno jurídico por objeto de indagação,  a análise  se  processa  em  um  riquíssimo  plano,  onde  se  questionam problemas  da maior relevância  para  a  organização  social.  O  estudo ontológico  do  Direito,  a pesquisa  de seus elementos universais e necessários, o exame axiológico de suas formas de expressão constituem a matéria de reflexão da Filosofia Jurídica.

    Podemos  dizer,  resumidamente,  que  a  Filosofia  Jurídica  consiste na  pesquisa  conceptual  do Direito  e  implicações  lógicas,  por  seus princípios  e  razões  mais  elevados,  e  na  reflexão  crítico-valorativa das instituições jurídicas.

4.2  Objeto
    Como  estudo  reflexivo,  que  aspira  à  compreensão  do Direito  dentro  de  uma  visão harmônica da realidade, a Filosofia Jurídica dispõe de um amplo temário de análise que se divide em  dois grandes  planos  de  reflexão:  um  de  natureza  epistemológica,  onde  se pesquisa  o conceito  do  Direito  e  assuntos  afins,  e  outro  de  caráter axiológico,  no  qual  se  submetem  as instituições jurídicas a um exame crítico valorativo.

    A  primeira  grande  tarefa  atribuída  à  Filosofia  Jurídica  é  a  de esclarecer,  em  seus  aspectos universais  e necessários,  a noção  do Direito.  Uma reflexão segura  sobre temas jurídicos  requer uma ampla  noção  do  ius .  Tal  estudo  envolve  o  exame  de  numerosas questões,  sendo  que  a posição  a ser  assumida  pelo  jurisfilósofo  fica na  dependência  de  suas  inclinações  ideológicas. Vê-se,  por  aí,  a íntima  relação  existente  entre  a  Filosofia  geral  e  a  Filosofia  do Direito,  pois  as grandes correntes filosóficas possuem vigor e se irradiam por numerosos ramos do saber.

    A elaboração de um conceito do Direito é ato complexo, que impõe opções doutrinárias de longo alcance  na  problemática  jurídica.  Daí  por  que  o  exercício  dessa  liberdade  cultural  pressupõe  a experiência jurídica e o conhecimento das alternativas filosóficas.

    De acordo com o paralelo firmado por Emmanuel Kant, enquanto a Filosofia do Direito responde a  pergunta  Quid  Jus?  (o  que  é  o Direito?),  à  Ciência  Jurídica  compete  esclarecer  a  indagação "Quid Juris?" (o que é de Direito?). De fato, a tarefa de definir o Direito não se acha reservada às disciplinas jurídicas particulares, pois estas analisam apenas uma parcela da realidade jurídica e estabelecem  os  balizamentos de  legalidade.  A  Dogmática  Civil,  por  exemplo,  define  o  seu próprio campo de estudo e não está em condições de definir o todo no qual se insere. A Ciência Penal enumera as suas fontes de conhecimento, mas não está credenciada a informar sobre as do Direito em geral. Como a Filosofia do Direito contempla a árvore jurídica em sua totalidade e na sua relação com as coisas em geral, a ela está reservada a missão de dizer o que é o Direito e buscar as soluções para os problemas vinculados a essa indagação.

    Paralelamente  ao  problema  conceptual,  nessa  ordem  de  pesquisas  emergem  questões fundamentais,  como  a  relativa  aos  elementos     constitutivos  do  Direito;  a  indagação  se  este compõe-se  de  norma  e é  a  expressão  da  vontade  do  Estado;  se  a  coação  faz  parte  da essência do Direito; se a lei injusta é Direito e, como tal, obrigatória; se a efetividade é essencial à validade do Direito etc.

    A  outra  tarefa  da  Filosofia  do  Direito,  de  natureza  axiológica,     é  de  alcance  mais  prático  e consiste  na  apreciação  valorativa  das  leis, institutos  ou  do  sistema  jurídico.  A  pesquisa  pode situar-se  no  plano de  lege  lata ,  com  a  crítica  ao  Direito  vigente,  ou  no  de lege  ferenda , em  um ensaio do Direito ideal a ser criado. Durante esta pesquisa o pensamento iusfilósofico é norteado por  princípios  éticos  e,  fundamentalmente,  pelo  valor justiça,  por  intermédio  dos  quais  avalia o ordenamento, para justificá-lo  ou negar-lhe  validade. Esta segunda parte está mais ligada  aos imperativos da vida social e visa ao enriquecimento da Ciência do Direito, pois julga os critérios da lei em função dos valores  humanos e sociais. Quando se examina a figura da eutanásia, por exemplo, à luz  do que determina  o Código  Penal, o  estudo é de  ciência jurídica, mas quando  a atividade intelectual extrapola esse plano, a fim de julgar o critério legal com base nos postulados éticos,a tarefa desenvolve-se no âmbito e com os métodos da Filosofia do Direito.

    Enquanto a investigação epistemológica  se converge para  o Direito  em sua forma  pura  e  é do interesse  restrito  dos  jurisprudentes e  filósofos  do  Direito,  a  perspectiva  axiológica,  que  se concentra  em torno  do  Direito  como  regulamentação  concreta  de  fatos  sociais,  no propósito  de ajustá-lo  à  natureza  positiva  das  coisas,  é  matéria  de interesse  também  do  homem  simples  do povo,  na  qualidade  de destinatário  do  Direito  Positivo  e  como  ente  capaz  de  se posicionar valorativamente.

    Alguns  autores,  como  Icilio  Vanni  e  Del  Vecchio,  apontam ainda,  como  parte  do  objeto,  a pesquisa histórica,  que  teria  a missão de  averiguar  os  fatores  que  determinam  a elaboração  do Direito e o seu desenvolvimento. Reconhecemos que esta ordem de indagação é relevante, mas que se acha afeta, hoje, à Sociologia do Direito, disciplina que já alcançou autonomia científica.








domingo, 8 de abril de 2012

Diálogos Platônicos
De Platão, CRITÃO (Críton), ou o DEVER
Extraído do livro Diálogos, da coleção Clássicos Cultrix.
Tradução: Jaime Bruna.


Personagens: Sócrates e Critão, dois velhos.
Cena: Uma cela, na prisão de Atenas.



Sócrates- Por que viestes a estas horas, Critão? É madrugada ainda, não é?

Critão- Perfeitamente.

Sócrates- Que horas, precisamente?

Critão- Mal começa a clarear.
Sócrates- Admira-me que o guarda da prisão te haja atendido. 
Critão- Ele já se acostumou comigo, Sócrates, de tanto eu freqüentar este lugar; ademais, deve-me alguns favores.
Sócrates- Acabas de chegar ou faz tempo? 
Sócrates- Então, porque não me acordaste logo e sentaste aí calado?
Critão- É que, por Zeus, Sócrates, em teu lugar, eu não gostaria de passar muito tempo acordado numa aflição assim; estou mesmo admirando, há tempo, a placidez do teu sono. Não te acordei de propósito; para que pudesses gozar quanto mais dessa tranqüilidade. Já muitas vezes antes, em toda a nossa vida, te considerei feliz pelo teu gênio, porém muito mais agora, na presente desgraça, pela facilidade e brandura com que a suportas.
Sócrates- Realmente, Critão, eu destoaria, se na minha idade, me agastasse por ter de morrer em breve.
Critão- Outros também, Sócrates, passam por provações assim na mesma idade; no entanto, os anos não os dispensam de se agastarem com a sorte que lhes toca.
Sócrates- Assim é. Mas, afinal, para que vieste tão cedo?
Critão- Para trazer uma notícia, Sócrates, dolorosa e desoladora - não assim para ti, pelo que vejo - mas dolorosa e desoladora para mim e para todos os teus amigos; acho que a poderia contar como uma das que mais o sejam.
Sócrates- Que vem a ser? Chegou de Delos o navio a cuja chegada devo morrer?
Critão- Bem, chegar não chegou, mas calculo que deve aportar hoje, pelo que noticiam pessoas vindas de Súnio e que lá o deixaram. As novas dão a entender que vai aportar hoje, e será fatalmente amanhã, Sócrates que terás de cessar de viver.
Sócrates- Pois bem, Critão, à boa ventura! Se assim apraz aos deuses, assim seja. Todavia, acho que não vai aportar hoje.
Critão- Em que te baseias?
Sócrates- Vou dizê-lo. Devo morrer, penso, no dia seguinte ao da chegada do navio.
Critão- Ao menos assim dizem as autoridades competentes.
Sócrates- Por isso, acho que não vai aportar no dia de hoje, mas no de amanhã. Baseio-me num sonho que acabo de ter esta noite. Talvez mesmo tenha sido oportuno não me haveres despertado. 
Critão- Como foi o sonho? Sócrates- Parecia-me que vinha uma mulher formosa, de lindas feições, vestida de branco, me chamava e dizia: "Sócrates, depois de amanhã poderás ter chegado às férteis campinas de Fétia".
Critão- Sonho esquisito, Sócrates!
Sócrates- De sentido claro, ao que penso, Critão.
Critão- Por demais, penso eu. Contudo, meu pobre Sócrates, ainda uma vez, dá-me ouvidos e põe-te a salvo; porque, para mim, se vieres a morrer, a desdita não será uma só; à parte a perda de um amigo como não acharei nenhum igual, acresce que muita gente, que não nos conhece bem, a mim e a ti, pensará que eu, podendo salvar-te, se me dispusesse a gastar dinheiro, não me importei. Ora, existe reputação vergonhosa do que a de fazer caso do dinheiro que dos amigos? O povo não vai acreditar que tu é que não quiseste sair daqui, a despeito de o querermos nós mais que tudo.
Sócrates- Mas para nós, meu caro Critão, é tão importante assim a opinião do povo? A gente melhor, com quem mais importa que nos preocupemos, cuidará que as coisas se terão passado tal como se tiverem passado.
Critão- Mas bem vês, Sócrates, que não se pode deixar de fazer caso também da opinião do povo. Os fatos mesmos de agora dizem claro que o povo é capaz de fazer, não os mais pequeninos dos males, mas como que os maiores; basta que entre eles se espalhem calúnias contra alguém.
Sócrates- Oxalá, Critão, fosse o povo capaz de praticar os maiores males, para ser capaz também dos maiores benefícios! Seria esplêndido. Não o é, porém, nem destes nem daqueles. Incapaz de dar o siso, bem como de tirá-lo, ele obra ao sabor do acaso.
Critão- Vá lá que assim seja. Mas dize-me uma coisa, Sócrates: estás procurando evitar, não é? que eu e os outros amigos teus, caso saias daqui, venhamos a ser molestados pelos sicofantas, sob a acusação de te subtrair daqui, e obrigados a abrir mão de todos os nossos haveres, ou pelo menos de grossas quantias, ou a sofrer, além disso, qualquer outra pena? Se é isso que temes, manda o medo às urtigas. É justo que nós, para salvar-te, corramos esse perigo, e maiores ainda, se for preciso. Vamos, dá-me ouvidos e não proceda de outra maneira.
Sócrates- Estou evitando isso tudo, Critão, e muitas outras coisas.
Critão- Pois não tenhas esse receio. Não é muito o dinheiro que certas pessoas querem receber para levar-te daqui e salvar-te. Depois, não vês como são baratos esses  sicofantas? Que não seria preciso gastar muito com eles? Os meus haveres estão a tua disposição e acho que são suficientes; além disso, caso apreensivo por mim, te pareças não devas despender o meu, aí estão aqueles estrangeiros, prontos a gastar; um, até trouxe exatamente para isso dinheiro suficiente, Símias de Tebas; Cebes também está pronto e muitíssimos outros. Por isso, repito, não seja por este receio que desistas de te salvar; tampouco te embaraces, como dizia no tribunal, com a possibilidade de, partindo, não teres do que viver. Em muitos lugares, mesmo no exterior, onde fores parar, acharás amizade; se quiseres ir para a Tessália, tenho lá hóspedes que te darão grande apreço e te oferecerão segurança, de sorte que ninguém na Tessália te molestará. Demais, Sócrates, acho que cometes uma injustiça entregando-te, quando te podes salvar; estás trabalhando para que te aconteça exatamente aquilo a que visariam teus inimigos. - a que visaram quando decidiram tua perda. De mais a mais, ao meu ver, atraiçoa também os teus filhos; podendo criá-los e educá-los, tu queres ir-te, abandonando-os; no que te concerne, fiquem eles entregues à sua sorte; a deles, é natural, será a sorte costumeira dos que caem na orfandade. A gente deve ou não ter filhos, ou sofrer juntamente com eles, criando-os e educando-os. Tu me dás a impressão de estarem escolhendo a sua maior comodidade. Deve-se, porém, escolher o que escolheria um homem bom e de brio, ao menos quando vives dizendo não ter outra preocupação na vida senão a virtude. Eu, sabes? tenho vergonha por ti e por todos nós, os teus amigos, de que atribuam a covardia de nossa parte tudo o que aconteceu contigo: o teu comparecimento diante do tribunal, quando podias deixar de comparecer; a maneira pela qual o processo mesmo correu; por fim, este desfecho, como que o mais ridículo da história, a impressão de que nos esgueiramos, covardes e sem brio, sem termos providenciado, nem nós outros nem tu, a tua salvação, possível e realizável se tivéssemos algum préstimo. Evita, Sócrates, que essa pecha, em acréscimo a tua desgraça, caia sobre ti ou sobre nós. Vamos, resolve-te, que já não é tempo de resolver, mas de ter resolvido. Só há porém, uma resolução, e tudo deve estar feito na noite de hoje; se nos demorarmos mais, já não será mais realizável nem possível. De toda forma, Sócrates, dá-me ouvidos e não procedas de outra maneira.
Sócrates- Querido Critão! Quão precioso o teu ardor, se alguma retidão o acompanhasse! Não sendo assim, quanto mais insistente, tanto mais penoso. Temos, pois, de examinar se devemos proceder como queres ou não. Quanto a mim, não é de agora, sempre fui deste feitio: não cedo a nenhuma outra de minhas razões, senão à que minhas reflexões demonstram ser a melhor. As razões que alegava no passado, não as posso enjeitar agora em vista de minha sorte presente; elas se me apresentam como que inalteradas; são as mesmas de antes as que estou respeitando e acatando; se nestas conjunturas, não temos outras melhores para alegar, fica certo de que não cederei absolutamente a tuas instâncias; ainda que, com mais ameaças que as atuais, nos acene o poderia da multidão, como a crianças, com o espantalho das prisões, mortes e confisco de bens. Como, portanto, faremos tal exame o mais acuradamente possível? Será retomando, em primeiro lugar, aquela razão que alegas a propósito das opiniões? Estávamos certos ou errados ao repetirmos que das opiniões umas devemos acatar, outras não? Ou antes, de eu ter de morrer, era acertado dizê-lo, mas agora se patenteou - não é assim? Que falávamos por falar, mas não passava de brincadeira, futilidade? Francamente, Critão, desejo examinar contigo se aquela razão se nos apresentará um tanto modificada em vista da minha situação, ou idêntica, e se as mandaremos às urtigas, ou lhe obedeceremos. Costumavam dizer, creio eu, os que presumem falar seriamente, mais ou menos o mesmo que eu próprio dizia há pouco: que, das opiniões que os homens formam, a umas se deve grande acatamento, a outras não. Pelos deuses, Critão, não te parece uma boa norma? Porque tu, tanto quanto alcançam as previsões humanas, não estás em vias de morrer amanhã, nem poderia ser abalado o teu juízo pela adversidade presente. Portanto, reflete; não achas acertado dizer que nem a todas as opiniões dos homens se deve acatamento, mas a umas sim e outras não? E não às de todos, mas às de uns sim e às de outros não? Que dizes? Não é com razão que se diz isso?
Critão- É com razão.
Sócrates- Logo, acatar as boas, não as ruins.
Critão- Perfeitamente.
Sócrates- Boas não são as dos judiciosos, ruins, as dos sandeus?
Critão- Como não?
Sócrates- Ora bem, em que sentido se faziam tais distinções? Um homem que pratica a ginástica e segue aquela norma dá atenção ao louvor, à censura, ao parecer de toda a gente ou somente ao de quem porventura é médico ou instrutor de ginástica?
Critão- Só ao deste.
Sócrates- Assim, deve temer as censuras e folgar com o louvor de único e não da multidão.
Critão- Evidentemente.
Sócrates- Deve, não é assim? Conformas suas práticas, seus exercícios, sua alimentação, sua bebida, somente com a opinião do mestre e entendido, de preferência a de todos os demais juntos. 
Critão- Assim é.
Sócrates- Bem. Se desobedece àquele único, se desacata ao seu parecer e ao seu louvor, para atender ao que diz a multidão que de nada entende, não sofrerá nenhuma conseqüência ruim?
Critão- Como não?
Sócrates- Qual é essa conseqüência ruim, que extensão tem e onde atinge o desobediente?
Critão- Está-se vendo que no corpo, porque é este que ele arruina.
Sócrates- Dizes bem. Portanto, Critão, para não passarmos tudo em revista, com tudo mais se dá o mesmo. Agora, quando ao justo e ao injusto ao freio e ao belo, ao bem e ao mal, objetos desta nossa deliberação, devemos nós seguir a opinião da multidão e temê-la, ou a do único, se algum existe, entendido, a quem devemos respeitar e temer mais do que a todos os demais juntos? se não obedecermos ao qual, corromperemos e danificaremos aquilo que melhora coma justiça e se arruina com a injustiça? Ou isto não tem cabimento?
Critão- Acho que tem, Sócrates.
Sócrates- Ora, pois, se aquilo que melhora com um regime saudável e se corrompe com um regime insalubre nós arruinarmos obedecendo à opinião que não é a dos entendidos, é-nos possível viver com essa parte arruinada? É ao corpo que nos referimos, ou não?
Critão- Sim.
Sócrates- Então, é-nos possível viver com um corpo em más condições, arruinado?
Critão- De modo nenhum.
Sócrates- Podemos, porém, acaso viver depois de arruinar aquela parte que a injustiça danifica e a justiça beneficia? Ou considerarmos de menos valor que o corpo, aquela parte de nosso ser, seja qual for, com que se relaciona a injustiça e a justiça?
Critão- De modo nenhum.
Sócrates- De maior valor, então?
Critão- Muito maior.
Sócrates- Logo, meu excelente amigo, não é absolutamente com o que dirá de nós a multidão que nos devemos preocupar, mas com o que dirá a autoridade em matéria de justiça e injustiça, a única, a Verdade em si. Assim sendo, para começar, não apontas o bom caminho quando nos prescreves que nos inquietemos com o pensamento da multidão a respeito do justo, do belo, do bem e de seus contrários. A multidão, no entanto, dirá alguém, é bem capaz de nos matar.
Critão- Isso é claro, Sócrates, haverá quem diga.
Sócrates- Decerto. Mas, meu admirável amigo, essa razão que acabamos de rever ainda me parece substancialmente a mesma de antes. Examina também se continua de pé para nós este outro princípio: que não devemos dar máxima importância ao viver, mas ao viver bem.
Critão- Continua.
Sócrates- E que viver bem, viver com honra e viver conforme a justiça é tudo um, continua de pé, ou não?
Critão- Continua.
Sócrates- Por conseguinte, partindo desses princípios nos quais concordamos, devemos averiguar se é justo que eu tente sair daqui sem permissão dos atenienses, ou injusto: se se provar que é justo, tentemos; se não, desistamos. As considerações que aduzes, de dispêndio de dinheiro, reputação, criação de filhos, Critão, cuidado não sejam na realidade especulação próprias de quem, com a mesma facilidade, mataria, e se pudesse, ressuscitaria, sem nenhum critério a saber, a multidão. Nós, porém, pois que assim recide a razão, não sujeitemos à consideração nada além do que há pouco dizíamos: se será procedimento justo dar dinheiro aos que me vão tirar daqui, suborná-los, nós mesmos promovendo a fuga e fugindo, ou se, na verdade, procederemos com injustiça em todos esses atos, se se provar que cometeremos injustiça, não será absolutamente mister indagar se devo morrer, ficando quieto aqui, ou sofrer qualquer outra pena, antes do que praticar uma injustiça.
Critão- Acho que falas com acerto, Sócrates; vê, pois o que devemos fazer.
Sócrates- Vejamo-lo juntos, meu caro, e se puderes de algum modo refutar-me, refuta-me e te obedecerei; Se não, cessa desde logo, meu boníssimo amigo, de insistir no mesmo assunto, de que preciso sair daqui contrariando os atenienses; porque dou muita importância a proceder com o teu assentimento e não mau grado teu. Vê, pois, se te parecem satisfatórios os argumentos básicos deste exame e procura responder a minhas perguntas com a maior sinceridade.
Critão- Pois não, procurarei.
Sócrates- Asseveramos que não se deve cometer injustiça voluntária em caso nenhum, ou que em alguns casos se deve, e noutros não? Ou que de modo algum é bom nem honroso cometê-la, como tantas vezes no passado conviemos? e é o que acabamos de repetir. Porventura, todas aquelas nossas convenções de antes se entornaram nestes poucos dias e, durante tanto tempo, Critão, velhos como somos, em nossos graves entretenimentos não nos demos conta de que nada diferíamos das crianças? Ou, sem dúvida alguma é como dizíamos, quer o admita a multidão, quer não? Mais: ainda que tenhamos de experimentar momentos quer ainda mais dolorosos, quer mais suaves, o procedimento injusto, em qualquer hipóteses, não é sempre, para quem o tem, um mal e uma vergonha? Afirmamos isso ou não?
Critão- Afirmamos.
Sócrates- Logo, jamais se deve proceder contra a justiça.
Critão- Jamais, por certo.
Sócrates- Nem mesmo retribuir a injustiça com a injustiça, como pensa a multidão, pois o procedimento injusto é sempre inadmissível.
Critão- Parece que não.
Sócrates- E daí? Devemos praticar maldades ou não, Critão?
Critão- Não devemos, sem dúvida, Sócrates.
Sócrates- Adiante. Retribuir o mal que nos fazem é justo, como diz a multidão, ou injusto?
Critão- Absolutamente injusto.
Sócrates- Sim, porque entre fazer mal a uma pessoa e cometer uma injustiça, não há diferença nenhuma.
Critão- Dizes a verdade.
Sócrates- Em suma, não devemos retribuir a injustiça, nem fazer mal a pessoa alguma, seja qual for o mal que ela nos cause. Cautela, porém, Critão, ao admitires esses princípios, não o faças em contradição com o teu pensamento, pois sei que essa opinião é e será de alguns poucos. Entre os que a adotam e os que a repelem não existe um ânimo comum; fatalmente se a quererão mal uns aos outros, ao verem os propósitos uns dos outros. Portanto, considera muito bem tu se comungas a minha opinião, se concordas comigo e se nossa deliberação partirá do princípio de que jamais é acertado cometer injustiça, retribuí-la, vingar pelo mal que fazemos o mal que nos fazem, ou se diverges e não co-participas do princípio. Quanto a mim, essa é opinião minha antiga, que ainda agora mantenho. Tu, porém, se tens outro sentir, fala, dá-me a conhecer; se perseveras no de outrora, presta atenção ao que aí decorre.
Critão- Persevero, concordo contigo; por isso, prossegue.
Sócrates- Passo, então, às decorrências; ou melhor, pergunto se uma convenção que se firmou com alguém, sendo justa deve ser cumprida ou traída.
Critão- Deve ser cumprida.
Sócrates- Daí, presta atenção. Saindo daqui, desobedientes à cidade, lesamos a alguém e logo a quem menos devemos lesar, ou não? E cumprimos as convenções justas que firmamos, ou não?
Critão- Não sei responder a tuas perguntas, Sócrates; não as estou compreendendo.
Sócrates- Bem, reflete no seguinte. Se, no momento em que eu estivesse para me evadir daqui, ou como quer que se diga, chegassem as Leis e a Cidade, assomassem perguntado: "Dize-nos, Sócrates: que pretendes fazer? Que outra coisa meditas, com a façanha que intentas, senão destruir-nos a nós, as Leis e toda a Cidade, na medida de tuas forças? Acaso imaginas que ainda possa subsistir e não esteja destruída uma cidade onde nenhuma força tenham as sentenças proferidas, tornadas inoperantes e aniquiladas por obra de simples particulares?" - Que responder, Critão, a essas e semelhantes perguntas? Muitos argumentos poderiam ser aduzidos, sobretudo por um orador, em defesa da lei por nós violada que estabelece a autoridade das sentenças proferidas. Acaso responderei que a Cidade me agravou, não me julgou, conforme a justiça? Direi isso? Direi o quê?
Critão- Isso mesmo, por Zeus, ó Sócrates!
Sócrates- E se então, as Leis dissessem: "Sócrates, o que convencionaste conosco foi isso, ou que submeterias ás sentenças que a Cidade proferisse?" Se me admirasse dessa pergunta, diriam, talvez: "Sócrates, não te admires de nossas perguntas, mas responde-nos, porque tu também costuma lançar mão de perguntas e respostas. Vamos, pois; qual a queixa contra nós e contra a Cidade, que te move à nossa destruição? Para começar, não fomos nós que te demos nascimento e não foi por nosso intermédio que teu pai desposou tua mãe e te gerou? Dize: apontas algum defeito naquelas dentre nós que regulam os casamentos? Achas que não estão bem feitas? - Não aponto defeitos, diria eu. - Então nas que regulam a criação e educação do filho, que também recebeste? Aquelas que de nós regem a matéria, ao mandarem que teu pai te ensinasse música e ginástica, não o fizeram com acerto? - Fizeram, diria eu. - Bem; depois que nasceste, que te criaram e que educaram, poderia, de começo, negar que nos pertences, como filho nosso e nosso escravo, assim tu com teus ascendentes? E, se assim é, julgas ter ao menos os mesmos direitos que nós? Julgas ter o direito de fazer-nos em represália o mesmo que tentamos fazer a ti? Ora, em face do teu pai não terias os mesmos direitos, nem em face de teu amo, se amo tivesse, para retaliar o que te fizessem, nem para revidar doesto por doesto, golpe por golpe, nem para outros desforços; mas, em face da pátria e das Leis, se tentarmos destruir-te por assim acharmos de justiça, terás o direito de tentar, da tua parte também, dentro das tuas forças, destruir-nos em desforra a nós, as Leis e a pátria? E dirás que, assim procedendo, obras com justiça tu, que verdadeiramente tomas a virtude a sério?! Que sabedoria é a tua, se ignoras que, acima de tua mãe, teu pai e todos os outros teus ascendentes, a pátria é mais respeitável, mais venerável, mais sacrossanta, mais estimada dos deuses e dos homens sensatos? Que se deve mais veneração, obediência e carinho a uma pátria agastada do que a um pai? Que o dever é ou dissuadi-la ou cumprir seus mandados, sofrer quietamente o que ela manda sofrer, sejam espancamentos, sejam grilhões, seja a convocação para ser ferido ou morto na guerra? Tudo isso deve ser feito e esse é o direito - não esquivar-se; não recuar; não desertar o posto; mas, quer na guerra, quer no tribunal, em toda a parte, em suma, cumpre ou executar as ordens da cidade e da pátria ou obter a revogação palas vias criadas do direito. É impiedade usar de violência contra a mãe e o pai, mas ainda muito pior contra a pátria do que contra eles." Que responderei a isso, Critão? Que as Leis dizem a verdade, ou que não?
Critão- Acho que sim.
Sócrates- "Vê, portanto, Sócrates" diriam talvez as Leis, " temos razão em tachar de injusto o que intentas fazer-nos agora. Nós que te geramos, te criamos, te educamos, te admitimos à participação de todos os benefícios que podemos proporcionar a ti e a todos os demais cidadãos, sem embargo, proclamos termos facultado ao ateniense que o quiser, uma vez entrada na posse dos direitos civis e no conhecimento da vida pública e de nós, as Leis, se não formos de seu agrado, a liberdade de juntar o que é seu e partir para onde bem entender. Se, por não lhe agradarmos nós e a cidade, algum de vós quiser rumar para uma colônia ou quiser fixar residência em qualquer outro país, nenhuma de nós, as Leis, o impede ou proíbe de seguir para onde lhe parecer, levando o que é seu. Mas quem dentre vós aqui permanece, vendo a maneira pela qual distribuímos justiça e desempenhamos as outras atribuições do Estado, passamos a dizer que convencionou conosco de fato cumprir nossas determinações; desobedecendo-nos, é réu tresdobradamente: porque a nós que o geramos não presta a obediência; porque não o faz a nós que o criamos e porque, tendo convencionado obedecer-nos, nem obedece nem nos dissuade se incidimos nalgum erro; nós propomos, não impomos com aspereza o cumprimento de nossas ordens, e facultamos a escolha entre persuadir-nos do contrário e obedecer-nos; ele, porém, não faz nem uma coisa nem outra. Tais são os crimes, Sócrates, em que, se puserem em prática o teu plano, te declaramos incurso, mais do que os outros atenienses." Se então eu perguntasse: "Como assim?", talvez ralhassem comigo com razão, dizendo estar eu mais do que os outros atenienses preso àquele compromisso para com elas. Diriam: " Dispomos, Sócrates, de fortes provas de que nós e a cidade somos do teu agrado. Tu não terias assistido nela mais do que todos os outros atenienses, se ela não te agradasse mais do que a todos; mas nem para uma festa jamais saíste da cidade, salvo uma única vez para os jogos do Istmo; nem para qualquer lugar do exterior, a não ser como combatente; nem outra viagem jamais empreendeste, como os demais, nem te deu vontade de conhecer outras cidades e outras leis, mas nós e nossa cidade te havemos bastado, a tal ponto nos preferias e convinhas em seres cidadãos sob a nossa soberania. Por sinal que até geraste filhos nela, dando a entender que a cidade te agradava. Demais, mesmo durante o processo, se quisesses, podias obter a condenação ao exílio e fazer então, com o consentimento da cidade, o que pretendes fazer agora sem ele. Então, bravateavas tu que não te revoltarias, se houvesses de morrer; ao contrário, preferias, com declaravas, a morte ao exílio; mas agora não fazes honra àquelas palavras, nem hesitas na tentativa de aniquilar a nós, as Leis; fazes o que faria o mais vil dos escravos, tentando a fuga contra as convenções e acordos, pelos quais te obrigaste para conosco aos deveres de cidadão. Reponde-nos primeiro a esta pergunta: é verdade o que dizemos quando afirmamos que te obrigaste aos deveres de cidadão sob nosso império, não em palavras, mas de fato, ou é mentira?" - Que hei de dizer a isso, Critão? Posso discordar?
Critão- Forçosamente que não, Sócrates.
Sócrates- "Que fazes", diriam, "senão ladear as convenções e acordos que conosco firmaste sem coação, sem engodo, sem a urgência de resolver em tempo exíguo, mas através de setenta anos, durante os quais te era facultado emigrar, se nós te desprazíamos e se descobrisses serem injustas as convenções? Mas tu não preferiste nem Esparta nem Creta, que vives dizendo dotadas de boas leis, nem qualquer das outras cidades, gregas ou estrangeiras; daqui não te afasta-te mais do que os coxos, os cegos e outros mutilados, tanto, mais do que aos outros atenienses, te agradava a cidade, bem como nós, as Leis, evidentemente; pois a que agradaria uma cidade com exceção das leis? Agora, porém, não é? não manténs os compromissos! Sim, Sócrates, tu os manterás, se nos atenderes, e não te sujeitarás ao ridículo de abandonar a cidade. Vamos, reflete; ladeando os compromissos e cometendo semelhante falta, que benefício trarás para ti e para teus amigos? Que teus amigos também correrão o perigo serem exilados e privados de cidadania e de seus bens, está fora de dúvida; quanto a ti, para começar, se partires para uma das cidades mais próximas - digamos Tebas ou Mégara, que ambas têm boas leis- ali entrarás, Sócrates, como inimigo de suas instituições; todos quanto zelam por suas cidades te olharão de través, como um destruidor das leis; consolidarás a reputação de teus juízes, de sorte que pareçam haver-te julgado escorreitamente, porque todo violador das leis bem pode ser tido como corruptor dos jovens e dos levianos. Ou acaso evitarás, as cidades de boas leis e os homens mais morigerados? E valerá a pena viveres com esse comportamento? Ou entrarás em contato com eles e discorrerás, sem acanhamento... sobre o que, Sócrates? Sobre os teus assuntos daqui? Sobre o supremo valor que tem para a humanidade a virtude, a justiça, assim como a legalidade e as leis? E não achas que o papel de Sócrates se manifestará indecoroso? Tens de achar. Admitamos que, afastando-se desses lugares, vás para a Tessália, para junto dos hóspedes de Critão, porque lá sobeja a desordem e a licença, e quiçá gostariam de te ouvir contar como foi cômica a tua fuga da prisão, em travesti, metido num surrão de couro ou noutro disfarce habitual dos evadidos, e dissimulando esse jeito que é teu. Não haverá quem diga que, homem de idade, com pouco tempo provável de vida, não te pejaste de te agarres tão pegajosamente à existência, burlando as leis mais veneráveis? Talvez, se não magoares a ninguém; caso contrário, irás ouvir, Sócrates, indignidades incontáveis. Viverás de granjear o favor de toda gente, assujeitado, a fazer o quê? senão levar a vida regalada na Tessália como se lá tivesse ido para um banquete? E aquelas palestras sobre a justiça e outras formas de virtude? Por onde nos andarão elas? Oh! sim, é por amor dos filhos que desejas viver, para os criares e educares! Mas, daí? Vais levá-los para Tessália, torná-los estrangeiros de criação e formação, para que te fiquem devendo mais esse benefício? Ou não será assim? Será que, estando tu vivo e sendo eles criados aqui, terão melhor criação e formação sem a tua companhia, pois teus amigos é quem cuidarão deles? Então, se partires para a Tessália, eles cuidarão, mas não hão de cuidar se partires para o Hades? Se tem algum préstimo deveras os que protestam, amizade, hás de admitir que sim. Não, Sócrates; ouve-nos a nós que te criamos: não sobreponhas à justiça nem teus filhos, nem tua vida, nem qualquer outra coisa, para que, chegado ao Hades, possa alegas todas essas justificações perante os que lá governam. Está claro que, com aquele procedimento, aqui não será melhor, nem mais justo, nem mais pio, para ti nem para nenhum dos teus; nem lá será melhor, quando tiveres chegado. Presentemente, partirás, se partires vítima de injustiça, não nossa, das Leis, mas dos homens; se porém te evades, retribuindo assim vergonhosamente a injustiça, o dano com o dano, logrando próprios compromissos e acordos conosco, em detrimento daqueles a quem menos devias lesar, de ti próprio, de teus amigos, da tua pátria e nosso, nós, enquanto viveres, estaremos indignadas contigo e, lá embaixo, nossas irmãs, Leis do Hades, não hão de te acolher com benevolência, sabedoras do que nos procuraste arruinar na medida de tuas forças. Oh! Não! não possa mais Critão persuadir-te a fazer o que ele dirá com mais força do que nós !" Essa recriminação, Critão, meu querido companheiro, fica certo, parece-me que as estou ouvindo, tal como aos coribantes parece estarem ouvindo o som das flautas; é a ressonância mesma dessas palavras que zumbe no meu íntimo e não me deixa ouvir a outrem. Por isso, acredita-me, tanto quanto creio agora, o que disseres em sentido diverso, di-lo-ás em vão. No entanto, se esperas algum resultado, podes falar. 
Critão- Não, Sócrates; não tenho o que dizer.
Sócrates- Então desistem, Critão, procedamos daquela forma, porque tal é o caminho por onde a divindade nos guia.








Datilografado por Miguel Duclós, para a Consciência Homepage
http://www.consciencia.org

sexta-feira, 6 de abril de 2012


O papel, da Dialética em Aristóteles, Kant e Hegel - Tercio Sampaio Ferraz Jr.

Introdução: limites desta investigação

Não espere o leitor uma investigação exaustiva do problema. O tema que nos propomos elucidar é composto, evidentemente, de uma série de sub-temas que ferem, no seu conjunto, o próprio cerne dos sistemas filosóficos em tela. Não nos preocupa, entretanto, uma abordagem quantitativa da temática, em todas as suas ramificações, nem um entendimento cabal da própria dialética em cada um dos autores, mas apenas a sua função nos respectivos sistemas filosóficos.

Partimos do pressuposto de que é inerente a toda filosofia uma ambição arquitetônica. elaborando-se ela como um discurso rigoroso, onde se vinculam método e conteúdo, posto que a verdade da filosofia se instaura no seu próprio método. É nestes termos que se coloca o problema da função da dialética. isto é, da dialética dentro da arquitetônica. restringindo-nos, em nossa análise, ao nível da história da filosofia.

Dialética em Aristóteles

"São dialéticos os argumentos que concluem a partir de premissas prováveis, pela contraditória da tese dada" (Ref. Sof. 165b3). Isto significa que através do raciocínio dialético podemos provar, persuasivamente, teses contraditórias. Quereria, com isto. Aristóteles demonstrar que todas as teses são boas e, por meio de sofismas, provar uma contradição inerente ao real?

Evidentemente não. O raciocínio sobre contradições não significa para ele a contradição do próprio real. O que sucede é que, para nós, a linguagem, meio necessário para a comunicação humana, não é absolutamente idêntica ao real que ela simboliza.

A linguagem é definida por Aristóteles como símbolo: ela é "símbolo dos estados da alma" (De Interpr. 16a3). A relação entre a linguagem e o ser é, pois, mediata, havendo entre ambos as imagens. Daí a distinção entre símbolos (linguagem) e signos (estados da alma), sendo os primeiro arbitrários, não significativos por si e em si, enquanto os segundos são naturais, semelhantes por si às coisas a que correspondem. Donde se seguem dois tipos de relação:

a) de semelhança: imagens e coisas;

b) de significação: linguagem e imagens.

Na verdade, admitindo-se que os "estados da alma", são cópias da realidade, o signo, na problemática da linguagem (mas não sob o ângulo psicológico), pode ser esquecido. A questão, para Aristóteles, passa a girar em torno da relação mediata e equívoca entre o "logos" e a realidade.

O "logos" é definido como "som vocal que tem uma significação convencional" (De Interpr. 16b28). Convencional, porque nada se torna por natureza um nome.. A utilização de algo como símbolo implica numa certa arbitrariedade: a constituição de uma relação simbólica pressupõe a intervenção do espírito sob a forma de imposição de sentido.

A linguagem, portanto, não é imitação do ser, mas símbolo do ser; ela não o manifesta, mas o significa. A relação símbolo-ser não tem, por isso. um sentido existencial, isto é, o "logos" é significante, sem que isto implique que ele seja verdadeiro ou falso. Em outras palavras: a significação faz abstração da existência podendo um símbolo significar coisas fictícias. Por exemplo: um unicórnio, uma quimera (De Interpr. 16a16).

Daí se segue que todo enunciado significativo (phásis) não é necessariamente nem uma afirmação (katáphasis) nem uma negação (apóphasis) (De Interpr. 16b27). Para que haja afirmação ou negação é preciso outra coisa: a composição ou divisão dos termos isoladamente significativos, isto é, uma proposição.

Isto quer dizer que, se não podemos imitar ou manifestar as coisas mesmas na relação simbólica, podemos ao menos manifestar a relação (de junção ou separação) entre elas: a proposição aparece, pois, como o lugar privilegiado onde o "logos" sai de si mesmo, isto é, deixa de referir-se às coisas, para capitá-las nas suas relações e na sua existência. O "logos" não é verdadeiro ou falso enquanto significativo, mas o é enquanto propositivo.

A essência da proposição não está, propriamente, nos termos a compor, mas no ato da composição: no juízo. O juízo é um "estado de alma" e não um símbolo, não sendo, pois, função da linguagem, mas do espirito. Por isso, pode-se dizer que, no juízo o "logos" tenta suprimir a distância que o separa das coisas, deixando de ser discurso para ser pensamento das coisas.

Com efeito, a função óbvia da linguagem é significar, no sentido de designar as coisas, não havendo necessidade de que o "logos" exprima as coisas, isto é, nos dê um conhecimento claro das coisas, da sua essência. Entretanto, a linguagem, do plano do juízo, manifesta, revela, "deixa ver" aquilo a que ela se refere. A linguagem traduz, nestes termos, uma certa impotência: de um lado, ela tenta manifestar, mas, por natureza, ela só pode designar; assim, quando ela toma uma função judicativa e tenta exprimir, ela não chega a revelar as coisas, mas torna-se um .substituto delas Isto é, já que não é possível trazer as coisas mesmas para o discurso, usamos os seus substitutos, os símbolos, supondo que o que se passa com as coisas, passa-se também com eles.

Na verdade, porém, esta suposição é relativa, na medida em que "os nomes são em numero limitado, bem como a pluralidade das definições, enquanto as coisas são infinitas em número" (Ref. Sof. 165a7-l.3). Isto é, achando-se o "logos" distante da realidade, existe sempre a possibilidade de que a linguagem se desvincule do que ela simboliza por causa da sua limitação, induzindo-nos ao erro. Em outras palavras, o problema, para Arislóteles, deve ser equacionado nos seguintes termos: a verdade nos é dada de modo ante-predicativo — a verdade está nas coisas (Mel. 1051a34) – mas só pode ser formulada ao nível do discurso a verdade está no pensamento (.Mel. 1028h16); o discurso, entretanto, por causa da distância que o separa da realidade, é naturalmente equívoco, isto é, a equivocidade é um vício essencial da linguagem. O próprio "logos" pode assim, constituir uma barreira à obtenção da verdade. Como solucionar a questão?

Aristóteles reconhece a existência de certos discursos — dialéticos, isto é, somente verbais, suficientes para fundar um diálogo coerente — o discurso comum entre os homens — e que preenchem bem a função designativa. Ao nível destes discursos, diz-se que a linguagem abre uma via, aponta as coisas que devem ser investigadas, ainda que não se chegue até elas.

Com efeito, a dialética, arte das contradições, tem por utilidade o exercício quase escolar da palavra, oferecendo um método eficiente de argumentação. Ela nos ensina a discutir, representando a possibilidade de se chegar aos primeiros princípios da ciência; partindo de premissas prováveis, que representam a opinião da maioria dos sábios, através de contradições sucessivas, ela chega aos princípios, cuja fundamento é, porém, inevitavelmente, precário.

Este caráter da dialética, que a faz confrontar as opiniões, discutir com elas, instaurar com elas um diálogo, corresponde a um procedimento critico. Realmente. a critica é uma espécie da dialética e uma de suas formas mais importantes (Ref. Sof. 172a21 - 171b4). A crítica não é bem uma ciência, com objeto próprio, mas uma arte geral, cuja posse é atribuível a qualquer pessoa, mesmo as ignorantes. A importância da critica, da crítica feita através da prova da tese contrária, está no fortalecimento das opiniões, pela erradicação progressiva das equivocidades. Desde que, na construção da ciência, enquanto conhecimento verdadeiro, só podemos partir daquilo que é aceito como principio, a critica do verossimilhante nos conduz ao discurso cientifico. A crítica dos grandes sistemas, dos grandes filósofos, da opinião dos grupos, resulta, assim, numa atividade fundamental da dialética.

O problema da dialética, em Aristóteles, é, portanto, colocado ao nível da obtenção da verdade. Estando esta nas coisas, mas podendo exprimir-se apenas através da linguagem, a dialética tem uma clara função instrumental -órganon. Identifica-se, assim, o órganon, na prática, com a noção de dialética, conforme a vemos nos Tópicos (105a21; a33 ss.) um meio para resolver as aporias, a ambigüidade natural da linguagem, para buscar a alteridade e a identidade, levantar as premissas e as opiniões e, afinal, confrontá-las. Nesta atividade, a dialética aparece como a lógica da verdade procurada. Sua função é perfurar a barreira do "logos", na busca dos princípios e da verdade (Cf. Aubenque: Le probléme de l’être chez Aristote” – Paris. 1962, p. 251 ss.)

Não lhe cabe, porém, a estrutura e a sistematização da verdade possuída: a lógica da ciência à atribuída à analítica.

Aristóteles tem um conceito bastante estrito de ciência. A cientificidade é apenas Atribuída ao conhecimento da coisa como ela é (An. Posl. l, 2, 71b). Vale dizer, ao conhecimento da causalidade, da relação e da necessidade da coisa. Aristóteles nos fala, nestes lermos, em conhecimento universal. O universal não é como que uma soma ou resumo dos dados da experiência, mas um "limite", em cuja estabilidade ou determinabilidade repousa a estabilidade da própria experiência. O conhecimento universal é o conhecimento da essência. Por outro lado, porque as coisas mesmas têm uma essência é que as palavras podem ter uma significação unívoca, isto é, a unidade nominal, em Aristótelcs, é dada pelo real, ao nível da linguagem. Ora, sendo o real uno e idêntico, na estrutura do conhecimento verdadeiro, a analítica tem o primado. A dialética, ao seu lado, que parte das contradições, torna-se uma arte subsidiária: ela c apenas um iter.

Dialética em Kant.

Para Kant, a lógica transcendental tem por função determinar a origem, a extensão e o valor objetivo dos conhecimentos a priori. A lógica, nestes termos, não é para ele apenas uma ciência da forma da razão, mas uma ciência da razão por sua matéria. Não se limita, assim, a uma determinação subjetiva da razão, apontando meramente o modo pelo qual o entendimento pensa, mas destaca, através dos princípios a priori, como deve o espírito pensar. A lógica transcendental constitui-se, pois, para Kant, nas condições obrigatórias do pensamento, condições determinantes da veracidade e da própria existência do nosso pensamento.

Essa dissecação da razão compreende a descoberta dos elementos do entendimento puro, sua decomposição. Esta decomposição cabe à analítica transcendental. Ela versa sobre o entendimento puro, lido como uma unidade subsistente por si, independente de qualquer elemento empírico e de toda sensibilidade. Tratando dos elementos do conhecimento puro do entendimento e dos princípios sem os quais nenhum objeto pode ser absolutamente pensado, a analítica vem a se constituir na própria lógica da verdade.

A analítica transcendental quer demonstrar que o entendimento é limitado e não permite atingir as coisas em si. A dedução transcendental parece, neste sentido, ser suficiente para determinar nas categorias não um conhecimento completo e acabado, mas simples modos que supõem uma matéria: as instituições sensíveis. Diante disto, a interpretação tradicional de Kant, atribuindo à dialética transcendental a demonstração do vazio representado pelos elementos transcendentais assinalados pela analítica, relega a primeira, subsidiariamente, a um segundo plano, transformando-a em mera contra-prova da analítica.

Entretanto, isto não se dá absolutamente. Com efeito, diz-nos Kant. "a razão humana é, por sua natureza, arquitetônica, isto é, ela considera todos os conhecimentos como pertencentes a um sistema possível" (K.r.V. B-329). Se alentarmos os nossos conhecimentos do entendimento", continua ele, "na sua extensão total, veremos que aquilo sobre o que a razão dispõe de modo absolutamente peculiar e que ela procura realizar (zustande bringen) é a unidade do sistema" (K.r.V. B-148). Esta exigência da razão de uma unidade sistemática significa, em primeiro lugar e num sentido negativo, que os nossos conhecimentos não devem representar um mero agregado, sem unidade e sem sentido (K.r.V. B-538 ss.), fundado simplesmente, por exemplo, na semelhança dos diversos, pois, neste caso, teríamos apenas uma unidade técnica e não arquitetônica (K.r.V. B-539). Em segundo lugar e num sentido positivo, significa ela que todos os conhecimentos devem constituir uma totalidade comum, articulada nos seus elementos. Esta articulação deve proceder da afinidade e da conexão intima dos próprios fatores, devendo igualmente determinar "a priori a extensão (Umfang) da diversidade, bem como o lugar das partes entre si" (K.r.V. B-538). de tal modo que não possa ocorrer nem a retirada nem o acréscimo de membro, sem a destruição da unidade orgânica.

Essa totalidade sistemática não pode sei atingida pela experiência. Toda unidade que as categorias do entendimento possam produzir em atenção à síntese das diversas imagens em uma intuição, constitui, comparada com a exigência arquitetônica da razão, apenas uma tentativa de "soletrar os fenômenos segundo uma unidade sintética, para poder lê-los como experiência", permanecendo, destarte, sempre parcial (K.r.V. A-200; B-216). Ou seja. a razão exige uma unidade sistemática para a qual toda unidade do entendimento é uni elemento e, em virtude da qual, esta última se torna possível: nos quadros do conhecimento empírico não há unidade arquitetônica, que surge, outrossim, de "proposições sintéticas" (synlhetische Sätze) — as idéias, das quais o entendimento não tem ciência (K.r.V. A-197; B-243). Os princípios sistematizadores, as idéias, contêm, deste modo, uma certa "completude" (Vollständigkeit), "para a qual não basta nenhum conhecimento empírico possível, a razão tendo em vista ai apenas uma unidade sistemática, da qual ela procura aproximar a unidade empiricamente possível, sem alcançá-la de modo cabal" (K.r.V. B-383).

Por outro lado, sabemos que as leis do entendimento são, a priori, de validez objetiva, pois só por seu intermédio a experiência se torna possível. O entendimento é, assim, o legislador do mundo objetivo. Ele é não só a condição de possibilidade da experiência, mas também do próprio objeto da experiência. A razão, ao contrário, não é absolutamente necessária para nenhuma espécie de conhecimento. Apesar disso, ela também tem uma função legiferante, não, porém, para os objetos, mas para nós, para o sujeito. "Eu denomino", diz Kant, "todos os princípios (Grundsätze) subjetivos, que derivam não da propriedade do objeto, mas do interesse da razão referente a uma certa perfeição possível do conhecimento deste objeto, máximas da razão. Há, assim, máximas da razão especulativa, que repousam meramente no interesse especulativo da mesma, podendo até parecer serem elas princípios objetivos" (K.r.V. B-110).

As máximas não prescrevem à realidade que ela deva constituir-se sistematicamente na totalidade unitária da finalidade da razão, mas sim que o .sujeito deva encarar o conjunto da realidade, como se ela constituísse um sistema total, sem preocupar-se com a possibilidade de que a realidade já constitua ou não uma ordem sistemática. O interesse arquitetônico postula e "projeta" a conexão, mas não pode estabelecê-la". A unidade sistemática é "apenas unidade projetada, que deve ser vista não como dada, mas tão somente como problema" (K.r.V. R-129).

Isto significa que o absoluto, que regula todo o sistema racional (vernünftig) não nos é jamais "dado" (gegeben), mas nos é "assinalado como finalidade" (aufgegeben). As idéias, sobre as quais a unidade sistemática repousa, são apenas conceitos projetados": eles constróem o geral, o qual é aceito apenas como problemático, enquanto tarefa posta. A razão, neste sentido, não constitui nenhum objeto, ela não é constitutiva de nada, consistindo tão somente em assinalar pontos fictícios que servem de orientação ao entendimento, na medida em que lhe mostram como ele deve investigar a natureza, a fim de encontrar nela uma conexão e uma unidade. O pensamento sistemático, em Kant, aparece, pois, como um procedimento espontâneo da própria razão, sem fundamento objetivo.

Vê-se, por aí, a função altamente positiva da dialética na filosofia kantiana. As idéias transcendentais não são apenas contra-prova — aspecto negativo — da possibilidade limitada do conhecimento, mas atuam como ficções eurísticas, isto é, elas nos permitem realizar a unidade que não lemos no curso de nossas investigações. Por exemplo, a idéia de alma pode representar, como uma só unidade, o conjunto dos fenômenos psíquicos.

Esta função da dialética, possibilitando a sistematização da realidade, tem, na verdade, ligação muito mais direta com a obra posterior de Kant. com a Critica da Razão Prática e a Critica do Juízo, do que com a analítica transcendental. Com efeito, a impossibilidade da metafísica tradicional, a constatação da antitética da razão pura não poderiam conduzir Kant a um ceticismo. Ao contrário, sua atividade dialética, positivamente encarada, realiza, por um novo caminho – crítico – aquela aspiração última de uma sistematização de todo o real.

A situação da dialética, portanto, se inverte, em relação à Aristóteles. Para este, a inversão nunca seria admissível, desde que o real dado não é contraditório, mas uno, sendo contraditória a linguagem, Em Kant o problema assim posto não existe. Não há compromisso com uma realidade una. Ao contrário, o mundo se apresenta como um caos que à razão cabe ordenar. Assim, para Aristóleles, o erro surge da possibilidade de uma desvinculação entre linguagem e realidade. Para Kant, a verdade é ante-predicativa. O erro resulta de uma atividade — indevida – da própria razão. Assim, com ele, a dialética deixa de ser iter, abandona o nível lógico-formal e, ascendendo ao nível transcendental, participa da natureza da própria razão, possibilitando-lhe sua aspiração arquitetônica

Dialética em Hegel.

A Hegel não passou despercebido o sentido mais profundo da dialética kantiana. "Kant pôs a dialética bem no alvo e é este um dos seus maiores méritos" (Wiss. d. Logik – trad. A. Moni 1925, p 10). Reconhecendo que Kant operou uma transformação total no conceito e no uso da dialética, continua Hegel, dizendo que "a idéia geral que Kant pôs como base e fez valer, é a objetividade da aparência e a necessidade da contradição pertencendo à natureza da determinação do pensamento", (op. cit. p. 10).

Em que pese, entretanto, a transformação total representada pela concepção kantiana, esta ainda está longe da revolução que Hegel pretende operar no pensamento filosófico. Na verdade, o criticismo transcendental de Kant separa o conhecimento nos seus elementos a priori e a posteriori. Através do método critico, o significado dos fafores apriorísticos individuais e sua relação com os empíricos são, certamente, esclarecidos. O mesmo não ,se pode dizer, porém, do conjunto das funções a priori da razão, se captadas como pertencentes a uma unidade. Pois, segundo o próprio Kant, em relação a todos os elementos da esfera apriorística, dever-se-ia dizer que eles são a priori antecipados. Surge aí, porém, a necessidade de um critério unitário que permita determinar efetivamente o campo do a priori. Este critério, como vimos, não pode localizar-se no material empírico, razão pela qual o próprio Kant tentou um ordenamento sistemático das formas puras da razão, cujo principio se encontra na lógica pura e nas leis imanentes da atividade pura do entendimento. Dai se segue, contudo, uma contraposição logicamente estranha entre forma e matéria, que tem como conseqüência a "Skepsis" critica de Maimon, que duvida da possibilidade de uma delimitação não confliliva dos elementos absolutamente a priori em face dos a posteriori. "O destino observado no criticismo de Maimon", comenta o neo-Kantiano E. Lask (Gesammelle Schriften, Tübingen. 1923,. I-81), "mostra, assim, aonde o procedimento meramente indutivo e "rapsódico" ao qual também Kant permanece jungido, necessariamente nos deveria conduzir". Ele nos ensina que só se pode crer na necessidade da razão, não podendo ela ser fundada. A questão, porém, é saber se a um tal ceticismo deveria, realmente, caber a última palavra.

Vista deste ângulo, a dialética em Hegel vai assumir uma função absorvente e decisiva dentro da sistemática filosófica.

A possibilidade de uma sistemática universal não é, evidentemente, uma questão quantitativa, isto é, não se refere à quantidade das coisas sabidas em um tempo dado. O principio construtivo do sistema universal é antes de natureza qualitativa e se relaciona a tudo o que é filosoficamente sabido (Landgrebe: "Hegels Systembegriff" in Phäno-menologie und Geschichte - Darmstadt, 1968 p. 65 ss.).

Saber filosoficamente alguma coisa significa saber algo em seu ser (Sein), ou seja, em sua verdade e realidade. Neste sentido, a filosofia, à diferença das diversas ciências, busca explicitar um saber que devemos já possuir para poder tornar um determinado campo dos entes tema de uma ciência qualquer. Vale dizer, saber filosoficamente é saber o princípio em virtude do qual algo é realmente. Assim, quando dizemos que algo é isto e aquilo, o sentido mais profundo deste "é" já nos deve ser de algum modo conhecido. Quer dizer, há uma totalidade do ser (das Ganze des Seins) dentro da qual nós estamos de antemão, ainda que não se tenha tornado consciente aquilo que ela é (v. Obras completas, 1.º ed., VII ( pág. 7, 30).

A palavra "totalidade" não é tomada aqui num sentido somatório, mas refere-se ao conceito de sistema orgânico (Enzyklopädie § 336) enquanto desdobramento da totalidade já de algum modo entendida, desdobramento do ser (Sein) como principio a partir do qual lodo singular se determina. A tarefa de uma sistemática universal esclarece-se, deste modo, com um tornar expressamente consciente o saber em torno do principio, isto é, do ser (Sein), em virtude do qual a multiplicidade pode ser unificada, permitindo-nos dizer que realizamos experiências de uma multiplicidade de coisas cognoscíveis.

O ser (Sein) é principio em dois sentidos: principio responsável pela essência (Wesen) das coisas, isto é, por aquilo que o mundo (Welt) é, como conexão de acontecimentos e devir em seus fatores; e principio responsável pela existência (I)asein) desta mesma conexão, isto é, responsável pelo fato de que ela exista. O principio, nestes lermos, é absoluto, na medida em que não se funda em nenhuma outra coisa.

A questão do ser (Sein) revela-se, assim, como a questão do absoluto, que Hegel refere à idéia (Idee) : "a idéia é o verdadeiro em e por si, a unidade absoluta do conceito e da objetividade" (Enzykl. § 213)3. A idéia é, pois. o que constitui a realidade dos objetos e, ao mesmo tempo, possibilita que tenhamos representações corretas desta realidade, ou seja, "unidade do conceito e da objetividade. O absoluto é, portanto, "a idéia geral e una, que se especifica, pelo juízo (urteilend), no sistema das idéias determinadas, que o são apenas para retornar à idéia una, à sua verdade". Estas idéias são "especificações" (Besonderungen), isto é, "momentos" (no sentido de fatores) da idéia absoluta, nela apenas subsistentes.

Hegel afirma que a idéia se especifica pelo juízo num sistema de idéias específicas. Assim escreve ele: "a partir deste juizo é que a idéia é, primeiramente, apenas a substância única e geral, mas (a partir dele) sua realidade desenvolvida e verdadeira é que ela seja como sujeito e, assim, como espirito" (Enzykl. § 214). E noutro passo: "A idéia pode ser captada como a razão (Vernunft), além disso, como sujeito-objelo, como unidade do real e do ideal, do finito e do infinito, da alma e do corpo, como a possibilidade que tem em si mesma sua realidade, como aquilo cuja natureza só pode-se concebida como existente, ele, porque nela estão contidas todas as relações (Verhältnisse) do entendimento, infinito retorno e identidade em si" (Id. Ib.). A idéia absoluta é portanto, a unidade dos opostos e seu princípio de emanação e anulação. Isto é, ela é a "força" (Krafl) que permite a emanação de todo ente em suas oposições.

Qual é, então, a atividade desta "força"? A idéia foi determinada como "espirito" (Geist), "razão" (Vernunft), "sujeito" (Subjekt). A atividade especifica do "espirito" é: "pensar" (Denken) e o "pensar" se realiza no "julgar" (Urteilen). que se expressa em "proposições" (Sätze). "Pensar" é "refletir", é "alo de reflexão". Na "reflexão" bipartimo-nos e permanecemos num único e mesmo eu: na consciência que já lemos e na consciência que faz disto um objeto (Gegenstand). Temos aí o modelo originário da "unidade dos opostos".

Assim, quando Hegel fala de juizo (Urteil) como pensar (denken), está aí implícito o sentido etimológico da palavra alemã Urteilung Ur-teilung isto é, uma "partição originária" do absolutamente único. Tudo o que é e do qual se diz que é realmente deve ser concebido como resultado da atividade (Täligkeit) da idéia enquanto um "Urteilen".

Com isto não se está, evidentemente, afirmando um processo dedutivo dos singulares factuais, a partir do espírito absoluto. Trata-se, antes, da compreensão da essencialidade (Wesenhaftes) em todos os singulares factuais. Cada juizo, como Ur-teil, contém, em si, o principio de uma dualização. Ele desdobra o sujeito em seus predicados, volta-se refletidamente sobre o julgado, reflete sobre aquilo que ele já tem no julgado: o sujeito desdobra-se nele e é, aí, apesar disso, um único e mesmo sujeito pensante. Todo juízo, assim, não é uma conclusão (Schluss), mas uma decisão (Entschluss): a idéia decide-se por islã dualização (Entzweiung) consigo mesma. São as decisões do espirito, nas quais o ente e criado. A idéia é, pois, principio do movimento. Com isto Hegel pode dizer que a lógica (dialética), com a qual o sistema principia, é a apresentação (Darstellung) do espírito absoluto, isto é, o modo no qual o espirito, pensando, se torna consciente.

Esta relação originária (dialética) do ser uno (Einssein) no ser separado (Getrenntsein) é a própria estrutura do pensar. Observa-se aqui a diferença entre Hegel e Kant. Para este, o ser (Sein) é predicado da posição do ser no juízo, resultante da espontaneidade do entendimento. Desde que o entendimento, na posição das coisas sobre as quais ele julga, não as pode produzir, mas está prisioneiro do dado, isto é, de uma receptividade, o ser posto em toda atividade do entendimento é apenas ser-para-nós: fenômeno. Ou seja, mesmo as mais altas atividades do pensar, as inferências sistematizantes da razão (Vernunft) do condicionado ao incondicionado, do finito ao infinito, tem poder apenas sobre o ser-para-nós, isto é, sobre o conjunto conexo dos fenômenos, na medida em que estes constituem limite de cognoscibilidade dos dados. Elas não atingem, portanto, o ser tal como ele é. Isto porque, a possibilidade, defendida por Kant, de se sustentar, ao mesmo tempo, tese e antítese. — pois os opostos parecem não se excluir mutuamente significa que temos de renunciar ao absoluto.

Ora. Hegel estabelece um enunciado sobre o próprio ser. Nestes lermos, como ele mesmo o diz, (Wiss. d. l.og. p. 39). a dialética, anteriormente dada como uma parle separada da lógica, como um procedimento extrínseco e negativo, surge agora como um procedimento pertencente ao próprio ser. Em outras palavras, as limitações do entendimento devem, não ser recusadas, mas remetidas ao absoluto. Sua relação com o absoluto é o movimento no qual cada determinação mostrará que ela transgrediu seus limites, que não se pode pensar mais em lermos de limitude.

Vimos assim as vicissitudes por que passa a dialética. Em Arislóteles, a realidade una é fundamento do discurso verdadeiro. A dialética, a este nível, é secundária. A sistematização do real cabe à analítica. Com Kant, a dialética abandona o nível linguístico e, atingindo o plano transcendental, participa da natureza da razão, possibilitando, embora numa dimensão limitada, a única sistematização possível da totalidade, onde as idéias transcendentais se constituem em princípios eurísticos Finalmente, com Hegel, a superação do problema da síntese e da unidade sintética, no campo do conhecimento, leva a questão para o campo da própria consciência individual nas suas relações com a totalidade das manifestações existentes. O movimento de negação dos conceitos e sua superação passa a ser não o movimento do aparente, mas da própria essência da consciência. Com isto, a dialética despreza a lógica analítica formal e se constitui na única capaz de fornecer a sistematização universal.

Fonte: Revista Brasileira de Filosofia, v. XX, São Paulo: 1970: pp. 474-486.